sexta-feira, 16 de abril de 2010

Exegese, história, leitura. Rápidas observações

Bem, o Júlio "provocou", no bom sentido. Então, sinto-me motivado a contribuir com a discussão sobre exegese.

Inicialmente, acho que há um questionamento, que não vem de hoje, a respeito da clássica divisão entre exegese e hermenêutica. Segundo os modelos clássicos, a exegese se preocuparia com "aquilo que o texto diz ou quis dizer", enquanto que a hermenêutica se ocuparia "com o que significa o texto, e como ele se aplica hoje". Alguns métodos de caráter mais populista fazem a seguinte divisão na interpretação de um texto bíblico: o que o texto "diz"; o que o texto "quer dizer"; como o texto se "aplica" hoje.

Como alguém que trabalha com literatura, principalmente a bíblica, digo que não é possível manter essa distinção. Ao "dizer", os textos bíblicos "já querem dizer". Ou seja, há neles um processo retórico indissolúvel pelo qual os textos já indicam, em si mesmos, os meios pelos quais eles querem ser entendidos.

Ao dizer isso, entro no segundo aspecto de minha mensagem: a questão histórica. Hermeneuticamente falando, vivemos sob a tirania da História a um século ou mais. Tanto na interpretação de cunho conservador, fundamentalista, como na crítica. De acordo com o primeiro modelo interpretativo, a Bíblia testemunha o que realmente aconteceu, visto como um fato literalmente descrito. Se a Bíblia não for concebida dessa maneira, ela não pode ser a Palavra de Deus, dizem. No segundo modelo, o crítico, a premissa básica é a suspeita de que a Bíblia apresente os fatos tais como aconteceram. Então, mediante instrumental crítico-histórico, procura-se negar, corrigir, reescrever os textos bíblicos para que eles se adaptem à "visão de história" daquele que faz a crítica bíblica.

Nos dois casos a Bíblia torna-se cúmplice de processos e análises históricas. E isso não é bom. Há muitas incertezas históricas, sejam elas metodológicas ou mesmo de confirmação ou não. Os arqueólogos, especialistas chamados para testemunhar tais questões, hora dirão: "A Bíblia tinha razão", hora: "A Bíblia não tinha razão".

É claro que a abordagem histórica é importante. Ela nos ajuda a entender contextos, a situar fatos etc. Mas como ferramenta auxiliar. Não como premissa básica de trabalho. Até por que as teorias e abordagens estão em mutação.

Por isso, convém que tratemos a Bíblia como um conjunto de textos que surgem em circunstâncias históricas, contam histórias ambientadas em determinados momentos, mas cujos autores não se submetem servilmente à história, mas escolhem caminhos literários, retóricos, dialogais, intertextuais, etc para se comunicarem com seus leitores originais e com os todos os demais leitores e, principalmente, para que seus textos ultrapassem as barreiras do momento histórico em que formam produzidos.

Passo para o último ponto. A leitura. A exegese atual é ingênua! Parece estranho, mas é. Qualquer que seja ela. Pelo menos aquela que a maioria de nós conhece e é praticada em seminários teológicos em nosso país e que provém de países protestantes do ocidente. Trabalhamos pequenas porções textuais, analisamos palavras buscando seu sentido etmológico, vemos (quando vemos!) as estruturas sintáticas das frases hebraicas e gregas, propomos autoria, datação e contexto histórico, tudo isso como se os escritores dos livros bíblicos vivessem como vivemos hoje no século XXI.

Mas eles não faziam isso. Em primeiro lugar, os textos bíblicos eram lidos por poucos, visto que o índice de analfabetismo era grande naqueles períodos. Além disso, a leitura era algo extremamente difícil, para técnicos, visto que as palavras eram unidas, sem acentuação e a leitura se tornava, em si, um processo interpretativo. Mais ainda. Não havia capítulos (exceção ao livro de Salmos) e nem versículos. Os textos eram escritos em rolos, com toda a dificuldade de manuseio inerente a eles. E, por fim, os textos eram "ouvidos" mais do que lidos. Uma pessoa lia, e as demais, em assembléia, ouviam. Por isso tudo, volto a dizer, nossa exegese é ingênua quando desconsidera os meios de produção dos textos bíblicos, as estratégias orais utilizadas, e cria uma forma totalmente estranha de ler e trabalhar com esses textos.

Eu precisaria falar agora de uma teorização do texto. O que, afinal de contas, é um texto? Isso é fundamental. Mas deixo para depois.

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