sexta-feira, 9 de abril de 2010

Gênesis 22, fidelidade e nosso incômodo

Júlio salientou em suas duas últimas mensagens o caráter tenso e dramático de Gn 22 que exige de Abraão uma postura melhor definida por "fidelidade" do que por "fé".

A tensão, como já comentei anteriormente, se manifesta pelo segundo plano ambíguo, cheio de sombras, no qual Abraão é lançado quando Deus se ausenta da cena. Mas o caráter intenso do drama se verifica por outros elementos textuais. Por exemplo, a qualificação de Isaque por Deus, como:
"teu filho,
teu único filho
a quem amas" (Gn 22.1).

O paralelismo das linhas acentua o drama. Ele não é apenas "filho" de Abraão. É o "único" filho, filho da promessa, é aquele a quem ele "ama". É esse mesmo que deve ser sacrificado!

Outro dado intensificador do enredo é a informação de que Abraão levantou-se "de madrugada" que, como salientou Auerbach, não é um dado temporal apenas, mas salienta a disposição do patriarca de cumprir imediatamente a ordem que recebera.

Intensidade semelhante, mas repleta de uma perspectiva psicológica, é sua fala aos servos: "Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós" (v. 5). Mas como voltariam após a adoração, visto que o ato de adorar se concretizaria no sacrifício do filho? Como o ato que tira é o mesmo que devolve? Obviamente aqui não estão em jogo complexos de raciocínio linear, lógico, mas a revelação de uma mente e de um coração em crise, operando assistematicamente, criando sua própria lógica.

Digo isso tudo para ressaltar a importância daquilo que Júlio julga, ao meu ver corretamente, como a questão central da narrativa: a fidelidade.

Fidelidade nunca se manifesta de um lado apenas. Quando isso acontece, ela já se quebrou. Fidelidade pressupõe dois lados, dois sujeitos que se relacionam. No caso do texto bíblico, ela caracteriza a relação entre Deus e Abraão no contexto de aliança (Gn 15.12-21), que, semelhante ao texto que estamos discutindo, apresenta também o elemento do terror ("grande pavor e cerradas trevas o acometeram" - 15.12).

Por que Abraão é fiel a Deus e este ao ancião? Por que eles possuem um compromisso de relacionamento, de convivência. E, todos sabemos, os relacionamentos se desenvolvem, se avolumam, se aprofundam, manifestando facetas novas e aspectos não conhecidos daqueles em interação.

Relacionamentos baseados apenas naquilo que conhecemos, em definições e expectativas criadas a partir de uma avaliação estática das pessoas, tendem a esmaecer e, finalmente, dissolverem-se na dinâmica da vida.

Com Deus e Abraão não era assim. Eles estavam em aliança, tinham compromisso um com o outro, eram fiéis mutuamente. E isso fornecia o suporte para que se revelassem a cada dia, para que se conhecessem, se assombrassem um com o outro.

Acho que é esse aspecto, que o Júlio detectou na citação de Temor e Tremor, que está em jogo. É a fidelidade que dá suporte para que a vida se construa, amadureça, permita um novo fôlego quando estamos trôpegos.

Penso que esse é um dos equívocos que o cristianismo contemporâneo comete, principalmente aquele que tem como núcleo central a aliança que o cristão faz com Deus. Julgamos que pelo fato de Deus se revelar a nós ele tem a obrigação de se dar a conhecer totalmente, de se tornar previsível. Mas isso não é verdade. A realidade de nossas vidas demonstra isso e, acima de tudo, a revelação máxima de Deus não permite questionamento: Jesus Cristo.

Como, em Jesus, nos relacionamos com Deus? Caminhando com ele, sendo discipulados por ele. Mas isso não acontece quando estamos acomodados em nossas casas, em nossas igrejas, cercados de seguranças. O discipulado está vinculado intrinsecamente ao "caminho". Não há discipulado sem disposição para caminhar com Jesus Cristo. A fidelidade somente ganha contornos quando nos dispomos a nos tornarmos discípulos que estão "no caminho" com Jesus. Mesmo que o caminho nos leve ao altar do sacrifício.

2 comentários:

  1. Conheci este espaço a partir do blog da Prof. Cláudia Andréa Ferreira - o qual leio todos os dias, apesar de eu não ser um acadêmico, apenas um leigo interessado pelo assunto - e desde então ele está entre meus favoritos.

    Esta discussão acerca da fé de Abraão, por exemplo, me interessou bastante e o que se falou em outro post a respeito da fé - que não seria algo pontual e intermitente, mas durativo e constante - e neste post a respeito do discípulo de Jesus - como aquele que está no caminho com ele - me levou a pensar em conversão.

    Penso que a mudança de vida pela qual passamos quando de nossa conversão também seria algo dinâmico, em vez de pontual. Digo: em vez de ocorrer em um momento específico, o "momento da conversão", seria a conversão, na verdade, algo que se desenvolve ao longo de toda uma vida. Creio que "o momento de nossa conversão" é apenas, digamos, a ponta do iceberg, o momento a partir do qual passamos a nos dar conta de forma mais clara da presença de Deus em nossas vidas e nos dispomos com mais firmeza a nos relacionarmos com ele: apenas o começo de um vasto e rico caminho a ser atravessado.

    Deus não pára. Penso que, continuamente, Deus nos questiona, nos provoca, nos leva a mudar, nos alerta, nos faz lembrar. A conversão e a fé, assim, vão se realizando, se desenvolvendo em nossos espíritos aos poucos, e nisso nos tornamos menos armados, mais sábios e mais dispostos. Como você disse maravilhosamente:" Não há discipulado sem disposição para caminhar com Jesus Cristo. A fidelidade somente ganha contornos quando nos dispomos a nos tornarmos discípulos que estão "no caminho" com Jesus".

    Abraços a todos.

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  2. Moraes,

    Obrigado por ler e principalmente por postar um comentário em nosso blog.

    Concordo plenamente com você a respeito da conversão. De fato, a história do protestantismo, principalmente aquele de cunho pietista e avivalista, deu e dá muita ênfase a um momento específico na vida no qual a pessoa faz a opção por Jesus Cristo.

    Aqueles que se enquadram nessa descrição não estão errados, mas é necessário enfatizar o que você disse, que a conversão é um processo que, no dizer dos teólogos, já se deu, mas ao mesmo tempo está em processo. Ou seja, somos salvos, mas também seremos salvos plenamente na parusia do Cristo.

    Acho que o conceito de aliança, fundamental tanto para o AT quanto para o NT, ajuda a pensar essa questão. Converter-se ou ser convertido é o momento no qual uma pessoa decide relacionar-se com Deus, mediante Jesus Cristo, aceitando, igualmente, ser guiado por Ele. Essa relação se constrói concretamente quando andamos com Jesus, pela fé, e somos orientados pelo Espírito Santo.

    Bem, é isso. Fique à vontade para fazer comentários!

    Leonel.

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