quinta-feira, 8 de abril de 2010

Que deus é este?

A leitura de Gn 22,1-19 incomoda. Na superfície narrativa do texto, Deus se apresenta como íntimo de Abraão, chamando-o para conversar à noitinha. Íntimo, mas perigoso, pois tenta (ou testa?) Abraão a fazer o seu filho único, o filho prometido, subir (a raiz hebraica que se traduz por holocausto aqui, por influência da LXX e do NT gregos, se usa predominantemente para “subir”) aos céus como fumaça sacrificial para agradar o olfato divino (note como este início retoma o início do capítulo 12, em que Deus também chama Abrão perigosamente, com um convite para se tornar sem-teto, sem-terra, sem-família). Abraão não contesta a ordem de Deus (diferentemente do episódio da destruição de Sodoma e Gomorra, por exemplo). Mesmo quando Isaque (desconfiado?), pergunta ao pai pelo animal sacrificial, a resposta de Abraão é evasivamente crente – “Deus verá para si o cordeiro” (o verbo ver exerce papel fundamental neste episódio, assim como nos episódios relativos a Hagar e Ismael, o que se dilui na tradução “proverá”).
Dada a tentadora ordem, Deus some do cenário narrativo, reaparecendo apenas na fala de outros personagens. Nem mesmo para impedir Abraão de sacrificar Isaque Deus se digna a aparecer - envia um mensageiro, meio que de última hora, pois ele sai berrando do céu para que Abraão não desça a mão armada sobre o rapaz amarrado sobre a lenha. Quando o mensageiro grita para impedir o assassinato de Isaque, a justificativa é: “agora sei que temes a Deus” (uma exegese normal interpreta este temor como devoção, mas me pergunto, não seria melhor a gente ver aqui o medo mesmo?), sugerindo que Deus, mesmo após décadas de intimidade com Abraão, ainda não o conhecia. Por fim, de Deus o mensageiro diz que iria abençoar Abraão e sua descendência, retomando a promessa de Gênesis 12 ao Abrão aventureiramente crente.
Um olhar semiótico não se contenta com a superfície. Sempre quer ir mais fundo, desenterrar sentidos ocultos na visibilidade textual. É um tique algo “caçadores da arca perdida”. Para dar um rótulo mais dignificante, é um hábito anti-racionalista, além-moderno, pós-positivista. Para semioticistas, superfícies textuais (narrativas, poéticas ou conceituais) sempre encobrem, revestem, ocultam sentidos que estão dispersos nas teias da cultura ou aprisionados nas grades das instituições da Verdade. Não se trata de adivinhar o que está encoberto, mas de perquirir, perscrutar, “ir a fundo” dir-se-ia na linguagem acadêmica ou popular. Trata-se, de descobrir a temática oculta na figuratividade, trata-se de mergulhar, do trampolim discursivo, para os mares narrativo e profundo (alguns semioticistas falam em até seis níveis do percurso gerativo). Meu palpite?
Esta superfície figurativa oculta uma face de Deus que se revela escondidamente em toda a Bíblia. Elohim-YHWH (na exegese histórico-crítica teríamos de desencavar fontes e tradições) é fiel – ele cumpre o que promete (ou Ele faz o que ameaça), mesmo que entre a promessa e o cumprimento haja tantas tramas e tremas que a gente se esqueça do que é que realmente se está falando. Ele é “o mesmo, ontem, hoje e sempre”, mas não a mesmidade metafísica impassiva, impessoal. Elohim-YHWH não muda seu jeito de se relacionar com seus parceiros e parceiras – sempre tes(n)tando, acompanhando, abençoando, surpreendendo. Elohim-YHWH é teimosamente o mesmo, embora quase nunca a gente saiba o que é esse mesmo (que não é mesmice, o orgasmo fundamentalista, cientificista, positivista ...).
Sendo deus fiel, Elohim-YHWH espera de Abraão fidelidade, e fidelidade (ao contrário da obediência e do medo) não é algo que se consegue a partir da hierarquização e institucionalização das relações humanas. Fidelidade só se configura no sinuoso trajeto da relação pessoal entre parceiros iguais-na-diferença. Incidentalmente, mas não acidentalmente, uma das frases que se repete no texto, com Abraão e Isaque como sujeitos é “caminharam juntos” (fielmente). Mesma frase que se repete , no final do texto (sem “os dois” dos versos 6 e 8), desta vez com Abrão e os servos como sujeitos. Acidentalmente, mas não incidentalmente, os servos de Abraão não fugiram enquanto o boss estava longe na montanha; ficaram esperando, tomando conta do jumento fujão (não adianta insistir, jamais direi como posso provar que o jumento era fujão).
Será tão simples assim? Sim Esse é um deus fiel.
“Mas ... Mas ... Mas ... o quê”?
Fiel, mas imprevisível. Por toda a Bíblia se aponta, tensamente, titubeantemente, para essa face de Elohim-YHWH. Ele é um deus imprevisível – e pelo menos nisto o tal de Descartes tinha razão: nem Deus pode servir como fundamento para as nossas certezas. Por quê? Oras bolas, por que ele é Deus, nada mais, nada menos. Ele está lá e a gente está cá e entre lá e cá um abismo há. Todavia, como em semiótica o oculto tema nunca é solitário, mas sempre anda acompanhado: Elohim-YHWH é fielmente imprevisível e imprevisivelmente fiel. Fielmente imprevisível, jamais poderá ser manipulado por mãos e mentes e corações humanos – apesar da gente sempre tentar reduzir deus a um mero gênio da lâmpada mágica. Sendo imprevisivelmente fiel, jamais será arbitrário, embora tantas vezes seus atos assim no-lo pareçam. Fidelidade imprevisível que surpreende, renova, inova, regenera. Imprevisibilidade fiel assustadora, desestabilizadora.
Ah! E o que isto tem a ver com a quase-subida do Isaque? No mínimo, que um deus fiel não precisa de fumaças sacrificiais para aplacar suas narinas fumegantes. Como todo texto é um entroncamento, este faz se entrecruzarem textos sobre sacrifício de primogênitos e, definitivamente falando (se é que existe algo definitivo na interpretação), não se coloca na família dos sacrificadores (de animais, ou de crianças – família repleta de membros nas Escrituras judaicas e de outros povos). E o carneiro que subiu? Um palpite: o carneiro é símbolo messiânico de outro que, mediante o auto-sacrifício, deu fim a todo sacrifício. Ou, talvez seja símbolo teofânico a nos dizer que Deus não desaparecera totalmente do cenário, apenas não estava visível a olhos acostumados a procurá-lo nas alturas majestosas. Por que não ambos?
Gn 22,1-19 é um texto com muitos irmãos canônicos, mas, para mim, seus gêmeos são Miquéias 6,1-8 e Filipenses 2,5-11. Revelam um Elohim-YHWH fielmente imprevisível, imprevisivelmente fiel. No sério mundo hierárquico do Estado, Economia, Ciência, Mídia e Religião, a fidelidade é subversiva – ela foge da obrigação contratual e se instaura na relação pessoal. Não se sente bem entre os sisudos apertos de mão institucionalizados, mas fica à vontade entre as risadas de um bom papo entre amigos. Apesar das Instituições sempre tentarem engrandecer Deus à sua imagem, Elohim-YHWH prefere habitar com pequeninas criaturas. Somente um Deus bem-humorado se esconde acima das nuvens e atrás do mato enquanto seu eleito se mata tentando cumprir a satírica ordem de fazer o menino subir.

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