quinta-feira, 29 de julho de 2010

Cristologia, ocultamento e revelação no evangelho de Marcos. Primeira parte

Começo neste post a comentar um dado que me parece central no evangelho de Marcos: a questão do ocultamento/revelação de Jesus Cristo.

Mas não o faço a partir da perspectiva tradicional ligada ao exegeta alemão W. Wrede, que propôs a teoria do "ocultamento messiânico" no início do século XX. Minha proposta é mais modesta, buscando aliar uma leitura literária do evangelho a um engajamento no discipulado proposto pelo texto.

Do ponto de vista da revelação, a primeira frase do evangelho é central: "Princípio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus". Note-se que quem a profere é o narrador onisciente. Ele sabe que aquela pessoa da qual falará é especial. Ele é o Cristo, o ungido, o Filho de Deus". Esse é um conhecimento especial, e espera-se que, assim como ele o compartilha com os leitores no início do evangelho, ele faça o mesmo no seu desenvolvimento.

Mas não é bem isso que acontece. No próximo texto em que o narrador se refere ao Cristo, ele o faz utilizando o nome próprio "Jesus", nome muito comum naqueles tempos. Isso ocorrerá durante todo o evangelho. Ou seja, se no início o narrador transfere um conhecimento especial a respeito do protagonista do evangelho a nós, leitores, em seguida ele passa a referir-se a ele a partir de seu nome humano, histórico, sem qualquer grau de importância.

Tal comportamento gera um desequilíbrio na narrativa. Os leitores sabem quem é Jesus, mas os demais personagens envolvidos na história não.

Outro momento narrativo de revelação se dá quando Jesus é batizado (1.9-11). Nesse momento o Espírito desce sobre ele, e ouve-se uma voz do céu afirmando: "Tu és meu filho amado, em ti me comprazo"(v. 11). Convém reconhecer que, semelhantemente à informação concedida pelo narrador aos leitores, aqui há novamente uma situação externa à narrativa, uma voz que provém do céu, revelando algo a respeito daquele homem. E embora a voz se manifeste no plano da história contada, não há reação nenhuma a ela. Parece que a voz se dirige apenas a nós, leitores.

Um último elemento de revelação de Jesus são os demônios. Logo no início do evangelho aparece na sinagoga um possesso. O demônio reconhece imediatamente Jesus e diz: "Bem sei quem és: o Santo de Deus!" (1.24). Tal situação se repete em 3.11-12 (agora são inúmeros demônios que afirmarm ser Jesus o "Filho de Deus", conhecimento compartilhado com o narrador e com Deus); em 5.7 (o demônio afirma que Jesus é o Filho do Deus Altíssimo") etc.

Conclui-se, então, que no evangelho de Marcos há um grupo que possui um conhecimento privilegiado sobre Jesus: o narrador, Deus, os demônios e nós, leitores.

Por outro lado, há dados de ocultamento. Coloco nesse contexto as expressões de surpresa proferidas por homens e mulheres em geral, e pelos discípulos em particular, diante de atos poderosos operados por Jesus.

Por exemplo, na sinagoga de Cafarnaum, quando Jesus expulsa o demônio, a reação é: "Todos se admiraram, a ponto de perguntarem entre si: Que vem a ser isto? Uma nova doutrina! Com autoridade ele ordena aos espíritos imundos, e eles lhe obedecem! (1.27); após a cura do paralítico em Cafarnaum: "retirou-se à vista de todos, a ponto de se admirarem todos e darem glória a Deus, dizendo: Jamais vimos coisa assimn!"(2.12). Os discípulos, por sua vez, ao verem Jesus andando sobre as águas, reputam ser um fantasma e ficam apavorados (6.49). Após Jesus entrar no barco e o vento cessar, eles ficam "atônitos" (6.51).

Os dados e fatos descritos até aqui se circunscrevem tematicamente sob a ótica da pregação do evangelho (1.1; 14-15). É a pregação e a ação do evangelho que despertam reações em demônios, população e discípulos.

Neste ponto posso propor uma aplicação que penso ser uma estratégia do narrador. A pregação do evangelho por Jesus implica no chamamento de pessoas para segui-lo e para servi-lo (1.16-20; 1.31; 2.13-14 etc). Como notado acima, tais pessoas não conhecem plenamente Jesus (e muito menos não têm conhecimento do Cristo e nem do Filho de Deus). Mas elas o seguem. Andam com ele, são surpreendidas por ele, e algumas vezes decepcionadas por ele. Mas elas o seguem! Isso é diferente dos demônios, que sabem quem é Jesus, mas o temem e fogem dele.

Portanto, no nível do conhecimento, o narrador do evangelho de Marcos nos propõe algo muito sério a respeito do discipulado. Pessoas se tornaram discípulas no processo de seguimento. E nós, leitores? Nós sabemos muitos mais do que eles. Temos um conhecimento privilegiado a respeito de Jesus. Mas nós o seguimos? Ou será que nosso conhecimento está mais próximo daquele que os demônios possuem?

A partir do final do capítulo 8 a ênfase muda. Esse será o tema da próxima mensagem.

Nenhum comentário:

Postar um comentário