sábado, 31 de julho de 2010

Cristologia, ocultamento e revelação no evangelho de Marcos. Segunda Parte

Na mensagem anterior descrevi o jogo de ocultamento/revelação criado pelo narrador em Marcos para trabalhar o tema da cristologia.

Ele cria dois horizontes: o dos personagens, que sabem pouco sobre Jesus, e o dos leitores, que tomam conhecimento de uma cristologia mais desenvolvida a partir das afirmações do narrador, de Deus e dos demônios.

A estratégia visa confrontar os leitores: se os discípulos seguem Jesus sem conhecê-lo plenamente, o que se dará no processo de discipulado, os leitores, privilegidos, são desafiados, a partir do conhecimento maior sobre Jesus, a segui-lo também.

Termo chave nesse processo é "evangelho". O texto todo de Marcos é definido como evangelho = boa nova sobre Jesus (1.1). E nos primeiros 8 capítulos o evangelho é o conteúdo da pregação de Jesus (1.14-15).

Mas em 8.27-35 há uma alteração de ênfase. A partir da declaração de Pedro de que Jesus é o Cristo (8.29), os discípulos passam a ter ciência de quem de fato é o mestre a quem seguem. Nesse sentido, eles começam a se associar ao conhecimento expresso por Deus, pelos demônios e compartilhado pelos leitores. Mas mesmo assim tal ciência é incompleta, visto que Pedro logo em seguida censura Jesus ao ouvir sua afirmação de que deverá sofrer, morrer e ressuscitar (8.32).

Diante disso, Jesus afirma claramente que tal postura provém de Satanás (8.33), que, sabendo quem ele é e qual o seu destino, se opõe a que isso aconteça. Mais do que isso, Jesus declara categoricamente que o discípulo deve segui-lo até o fim: deve se negar, tomar a cruz e segui-lo. Afinal, é necessário perder a vida por causa de Jesus e do "evangelho" (8.35).

O termo "evangelho" neste versículo é marcano e não se encontra em Mateus (16.25) e nem em Lucas (9.24). Portanto, faz parte da teologia do evangelista. Com a inclusão o narrador constrói outro patamar para o discipulado. Se inicialmente o evangelho é um chamado, um imperativo para seguir a Jesus, a partir de agora, tendo o conhecimento de que ele é o Cristo, o evangelho se torna um preço a ser pago no processo do discipulado.

A partir desse momento o ritmo narrativo diminui, e com ele diminui a sequência de curas e milagres que aceleraram a narrativa na primeira parte do evangelho, e passa a ocupar o primeiro plano o ensino aos discípulos e o conflito com os religiosos judeus. Esse será o centro do evangelho nesse segmento de Marcos.

Há aqui um claro ensinamento para o leitor. Jesus só pode ser conhecido quando se toma ciência de sua missão. Sem saber que ele deve sofrer, morrer e ressuscitar, não é possível se tornar discípulo dele, pela simples razão de que o discípulo deve seguir nesse mesmo caminho. A identidade de Jesus Cristo está intimamente associada com seu sacrifício.

Por isso mesmo é que, no final do evangelho, surge uma última afirmação cristológica a respeito de Jesus. Ela provém do centurião junto à cruz. Diante da morte de Jesus ele pode exclamar: "Verdadeiramente, este homem era o Filho de Deus" (15.39).

No final de Marcos, o Jesus ressuscitado envia seus seguidores a pregar o evangelho (16.15). Isso implica em um recomeço do processo. Agora o evangelho será apresentado pelos discípulos como um chamado para seguir a Jesus, pessoas irão aderir a ele, e no desenvolvimento do discipulado elas aprenderão que é necessário que o evangelho se torne um preço a ser pago, mediante a imitação de Jesus Cristo etc.

Concluindo, parece-me que o reconhecimento das estratégias narrativas no evangelho de Marcos são fundamentais para que compreendamos como o tema da cristologia é trabalhado. O objetivo final é desafiar os leitores para assumirem um discipulado integral, cobrando que o conhecimento sobre Jesus se torne prático e que haja uma identificação com ele em seu sofrimento, morte e ressurreição.

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