sábado, 7 de agosto de 2010

Bola-fora como estratégia literária.

Nossa leitura acadêmica dos evangelhos é marcada por práticas escribais da história da tradição. Ou seja, um escritor ou redator (termo politica e exegeticamente correto) é alguém que teria em mãos uma concordância com os antecedentes de todos os conceitos que usa. Ele saberia que seus leitores em suas casas teriam o mesmo acesso aos seus instrumentos e acervo e que decifrariam seus enigmas, e referências cruzadas.
Até aqui a fantasia histórico-crítica.
Os evangelhos e, no caso, o Evangelho de Marcos, pressupõem horizontes culturais comuns entre escritor e leitores, o que não é o mesmo que pressupõe a história da tradição. Estes horizontes comuns procedem de práticas de leitura comuns. Mas leitura aqui deve ser entendida no sentido amplo, ou seja, o que se ouve em celebrações, em conversas, em leituras de fragmentos de textos, o que se completa dos fragmentos, as expectativas, etc. É dentro deste campo de expectativas originadas dos horizontes comuns que se dá o encontro hermenêutico entre autor (ou melhor, texto) e seus leitores. E é dentro deste horizonte comum que o autor (já estamos falando de autor? Credo!) cria. Criar não significa inventar do nada, mas fazer pequenas, sutís e não menos importantes mudanças no que se esperava que ele dissesse. Este é o caso do Evangelista Marcos. Ele inova, revoluciona, ao jogar com as expectativas de seus autores. O me parece é que esta é a função do tal "segredo messiânico". O segredo que Jesus pede de seus ouvintes parece ser uma estratégia marcana de dizer: olha, aqui tem coisa importante, aqui etá a forma como vejo as coisas. Este destaque só pode ser dado na narrativa, nas suas inversões e nos seus escândalos. Aliás, os escândalos de Marcos são tão absurdos que alguns têm que ser apresentados com bom humor. Vejamos brevemente dois casos.

Quando Jesus contradiz a confissão de Pedro de que ele é o Messias (Mc 8,29), ele proíbe Pedro de dizer isso, repreendendo-o severamente. E em seguida ensina aos discípulos que "era necessário que o Filho do Homem sofresse muito...", apresentando o caminho da cruz e do sofrimento. O que era escandaloso na história, era central para a narrativa de Marcos. A reação de Pedro é, por sua vez, a de repreender a Jesus severamente. Afinal, sofrer e morrer não é o que se espera de um Messias e muito menos de um Messias-Filho-do-Homem (vide Daniel 7!). Pois bem, aí vem a estratégia marcana de quebrar o ritmo de expectativas do leitor e ao mesmo tempo inserir algo sutilmente novo: ele faz Jesus ironizar Pedro. "Segue-me, seu Satanás". Ou seja, segue meu exemplo, o Messias mudou, não é o que você (inclusive você, leitor) esperava que ele fosse, mas o que ele foi, e o que lhe dá sentido: um Messias morto e ressuscitado. Segue-me? Isso mesmo. Esta é a melhor tradução do original grego. Mas onde já se viu um redator se permitir uma brincadeira deste tipo? rsss Mas foi isso que Marcos fez. Tanto que depois se volta para Pedro (e para todos os seus leitores) e diz: "Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me" (8,34).
 Alterações em relação ao que se espera acontecem não apenas na guinada de ações e palavras, mas também nos personagens envolvidos. É o que acontece na narrativa que se segue, em 9,1-8. Este é um dos textos mais enigmáticos da tradição evangélica. Trata-se de um relato epifânico com características visonárias, inserido logo após a revelação do sofrimento e da morte do Filho do Homem. A exegese histórico-crítica se vê tão perplexa diante desta narrativa que chegou até a considerá-la uma "narrativa pós-pascal fora de lugar". E, de certa forma é isso mesmo. No Apocalipse de Pedro, por exemplo, a transfiguração é o momento em que Jesus é transportado por dois anjos maravilhosos (Elias e Moisés) aos céus. Mas o problema criado pelo texto de Marcos não é tanto o lugar onde a experiência de contemplação do glorificado acontece, mas quem a legitima. Sabemos que na cena estão presentes três dos mais importantes discípulos (Pedro, Tiago e João). Na verdade a visão é deles (e de Marcos, nosso narrador). Ao lado de Jesus de vestes resplandescentes aparecem Elias e Moisés. É surpreendente que Elias acompanhe Moisés. Afinal o grande viajante celeste não era Elias (a despeito do seu arrebatamento), mas Enoque. Enoque e Moisés, os maiores personagens envolvidos com revelação. Mas Enoque é preterido por Elias. Seria isso uma interferência de uma tradição do Norte? Uma ligação entre o Elias milagreiro e o Jesus milagreiro? Ou o fato de que antes Elias e João Batista haviam sido associados pelos seus seguidores e que, se não era possível inserir na narrativa João Batista exaltado, pelo menos ele testemunharia a segunda voz celestial, como já fizera no batismo (Mc 1), ainda que como um Elias-João Batista.
 São estas pequenas alterações que fazem a diferença no todo. E todas seguidas de bom humor. O Filho do Homem morrerám seguido da ironia de Jesus ("Segue-me seu Satanás"). Elias no lugar de Enoque e a frase ingênua de Pedro: "Rabbi, é bom estarmos aqui; ergamos três tendas, uma para ti, uma para Moisés e outra para Elias". Ele não sabia ainda que estava em êxtase! 

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