segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Compartilhando óculos, lentes, saberes ...

Respondo à resposta do Leonel à minha resposta à sua resposta ..........

1. De fato, para um tema tão instigante como o do mito, há uma variedade de opções teóricas interessantes e legítimas. Um ponto em que concordamos (os três blogueiros) é o da superação do racionalismo positivista na maneira de avaliar a veracidade do mito. Nesse sentido, faço coro à fala do Leonel sobre o efeito negativo da proposta bultmanniana do mito na discussão teológica;

2. Havia terminado meu último post indicando que uma visão epistêmica do mito não impede que outras visões (também parciais) apresentem suas definições, o que Leonel nos ajudou com sua apresentação da noção de mito em Aristóteles. De fato, a polêmica com relação ao mito na exegese não se dá contra a "literatura", mas contra o racionalismo, ou positivismo, ou qualquer outro ismo que reduza o valor de verdade de outros modos humanos de produzir saber, atribuindo somente à "ciência" o acesso e o domínio da verdade e da validade (dando nome aos bois - a exegese histórico-crítica e a histórico-gramatical);

3. Estou tentando terminar a reescrita do um pequeno livro sobre história cultural de Israel nos tempos bíblicos. Nesse livro lido o tempo todo com a problemática da verdade, pois os fundamentalismos dominam o campo. Por um lado, os fundamentalismos de cunho religioso (judaico ou cristão) que enxergam nos relatos bíblicos descrições "positivistas" de fatos = "se está escrito assim, aconteceu exatamente dessa maneira". Por outro lado, temos os fundamentalistas historicistas que, de antemão, enxergam nos relatos bíblicos descrições míticas de fatos, ou seja = "está escrito assim, então só pode ter acontecido de outro jeito". As Escrituras judaicas não podem ser lidas desse jeito, mesmo quando desejamos reconstruir a história antiga do povo judeu - é preciso muita sutileza hermenêutica e histórica para, do "mito" chegar à "história cientificamente reconstruída";

4. Terminando. Não me sinto capaz de oferecer uma definição de mito. Acho melhor destacar algumas características que ressaltam à luz das discussões acadêmicas sobre o tema: (1) mito é uma forma de construção de saber sobre a vida humana no mundo, cuja veracidade e validade estão subordinadas aos critérios de validação intercultural e intersubjetiva; (2) mito é uma forma de comunicação que, além da qualidade estética e preferência pela forma narrativa, visa constituir identidades, projetos de vida, legitimar modos de exercício de poder, etc., de modo que sua validade não pode ser estabelecida apenas no campo isolado do jogo de linguagem mítico; (3) mito é uma forma de produzir saber que compete com as chamadas formas "modernas" de produção de saber verdadeiro, mas, simultaneamente, está inserida nessas formas modernas de produzir saber, por vezes até estruturando o modo científico ou racional supostamente verdadeiro em oposição ao modo mítico não-verdadeiro; (4) mitos exigem sensibilidade hermenêutica, que começa no "princípio de caridade" (D. Davidson, filósofo da linguagem, define o PC como a 'aceitação da racionalidade da enunciação do outro', independentemente de aceitarmos a validade ou veracidade de seu conteúdo), passa pela crítica e pelo conflito de interpretações, e chega à recriação de textos, saberes, jeitos de viver.

Mitos nos fazem viver a vida. Nem todos os mitos, porém, valem a pena...

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