quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Identidade messiânica de Jesus - revelação velada

Vou abordar o tema tratado pelo Leonel, mas a partir de outro viés - o das relações interdiscursivas. Uma das funções do evangelho é apresentar a identidade de Jesus como Messias - ou seja, o evangelho constrói a messianidade de Jesus enquanto teologia da igreja, para a igreja e para quem está fora da igreja (comunidade de discípulos, ainda não a "instituição"). Marcos apresenta, por exemplo, no relato do batismo de Jesus as características da messianidade do batizado, mas o faz mediante uma revelação "velada" ...

O texto de Marcos lê: "9. Naqueles dias veio Jesus, de Nazaré da Galiléia, e por João foi batizado no rio Jordão. 10 Logo ao sair da água, viu os céus rasgarem-se e o Espírito descendo como pomba sobre ele. 11 Então foi ouvida uma voz dos céus: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo."

A identidade de Jesus é construída sutilmente por Marcos através de alusões e citações de textos vétero-testamentários e também de textos não canônicos. Por exemplo, na Bíblia do Peregrino encontramos a seguinte nota sobre Mc 1,9-11: “Ele vê “os céus se abrir” [sic] (o que pediam os israelitas em Is 63,19); o Espírito desce até ele (como anuncia Is 11,1[2])” (p. 2394). Na Tradução Ecumênica da Bíblia, lemos: “Os céus se rasgam como um tecido (cf. 15,38), sinal de que Deus intervém para realizar suas promessas (Is 63,19), aqui pelo envio do Espírito Santo (cf. Testamento de Levi 18,6 e de Judá 24,2)” (p. 1924, nota o), “Ao descer sobre Jesus, o Espírito o designa como sendo o salvador prometido (cf. Is 11,2; 42,1; 63,11)” (p. 1294, nota p), e “... como seu Filho (cf. Sl 2,7), seu bem-amado (cf. 12,6, que talvez recorde Gn 22,2.12.16), objeto de sua predileção (cf. Is 42,1)” (p. 1294, nota q). Na Bíblia de Jerusalém, temos: “Recebendo o Espírito, Jesus é “ungido” (1,1,+) como rei sobre o novo povo de Deus (I Sm 16,13: Jz 3,10). É o que a voz celeste lhe declara citando Sl 2,7; cf. Lc 3,22, completado por Is 42,1: Jesus é também o “servo” que ensinará o direito às nações. Para descrever a cena, Marcos inspira-se em Is 63,11-19: Jesus é apresentado como um novo Moisés (cf. Êx 2,1ss; Nm 11,17)” (p. 1759, nota e).

Há o indicativo de um discurso direto no v. 11 – a voz dos céus diz: Tu és o meu filho amado, em ti me comprazo. Na fala da voz dos céus há uma revelação "velada", pois o conteúdo vem do Antigo Testamento, de três textos diferentes: Gn 22,2.12.16; Sl 2,7 e Is 42,1. Ora, só entende o que a voz do céu diz quem conhece - e bem - o Antigo Testamento ou, pelo menos, um certo tipo de discurso messiânico da época do evangelho. No caso de Gn 22 temos uma relação intertextual denominada alusão, pois não há uma cópia literal do texto de Gênesis: “filho amado” - “a quem tu amas” (Gn 22). Nos casos do Sl 2,7 e de Is 42,1 a relação intertextual está na forma da citação, pois parte do texto é literalmente copiada: “Tu és meu filho” (Sl 2,7); “em ti me comprazo” (Is 42,1).

Constato, assim, que o texto revela que Jesus é o Messias, mas só consegue entender a revelação quem possui o conhecimento enciclopédico (Umberto Eco) necessário - ou seja, a revelação só é revelação para "iniciados", para estudiosos ou estudantes da Bíblia e da sua interpretação apocalíptico-messiânica. Ao mesmo tempo, o texto demanda de quem o lê um intenso trabalho teológico, pois faz com que o leitor ou leiroa tenha de decifrar as possibilidades de sentido constituídas pela abundante interdiscursividade nele presente. Como, por exemplo, entender um Messias que é rei, Moisés, escravo, filho, vítima sacrificial...?

Este pequeno olhar sobre Mc 1,9-11 mostra que não precisamos seguir a noção de "segredo messiânico" oferecida por Wrede e sempre de novo discutida na interpretação de Marcos - outras possibilidades são mais interessantes e menos anacrônicas, na medida em que não precisamos supor uma "racionalidade moderna" subjacente ao propósito autoral de Marcos, suposição que está presente na tese de Wrede.

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