segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Leitura e Conhecimento Enciclopédico

Em meu último post utilizei um termo da semiótica de Umberto Eco - o "conhecimento enciclopédico" - para destacar o fato de que, em certo sentido, todo texto é simultaneamente velado e desvelado. Em outros posts, usei o termo "heterogeneidade constitutiva do sentido" para falar da presença de outros textos e discursos em um texto - no ato de sua produção - destacando que nem sempre o autor de um texto intencionou que outro texto estivesse presente em seu próprio.

Estes dois conceitos podem ser usados tanto para explicar aspectos da produção quanto da interpretação de textos. Por exemplo, em resposta ao post do Leonel, não podemos construir, com certeza, o perfil de uma comunidade cristã antiga a partir do texto bíblico. O que podemos construir com alguma certeza é o "leitor implícito" do autor do texto. No caso do evangelho de Marcos, a estrutura do texto, os gêneros utilizados, as relações intertextuais e interdiscursivas, todas supõem uma comunidade de leitores familiarizada com a Escritura judaica. Ou seja, para "Marcos" essa era a sua comunidade "implícita" - se a comunidade "real" correspondia, ou não, a essa comunidade implícita, é outra história, ou estória (é de bom senso supor que o autor conhecia bem a sua comunidade, mas não podemos ter certeza disto) ...

No caso do conhecimento enciclopédico ou da heterogeneidade constitutiva (e interpretativa), podem existir tantas diferenças entre autor e "primeiros leitores", que estes podem chegar a interpretações radicalmente distintas da(s) intencionada(s) pelo autor de um texto. Voltando a Marcos: um leitor antigo do Evangelho que não conhecesse as Escrituras judaicas faria uma interpretação distinta da de leitores que as conhecessem - e mesmo neste caso, diferentes formas de incorporar interdiscursivamente (ou enciclopedicamente) os textos da Escritura construiriam diferentes tipos de leitores.

Por isso, prefiro falar em "possibilidades de sentido" que texto e contexto proporcionam aos leitores. Duas pessoas da mesma cidade, da mesma época, da mesma religião, no I século, e.g., não interpretarão, necessariamente, da mesma maneira o mesmo texto. Ou - as "surpresas" que Marcos preparou em seu texto poderiam ser "conservadorismo" para alguns leitores; surpresas radicais para outros, heresias para outros, etc., etc. (dialogando mais diretamente com o post do Paulo). Por quê? Porque os seus conhecimentos enciclopédicos teriam sido diferentes (um faltou às reuniões de estudo de Isaías na sinagoga, enquanto aproveitava para namorar uma gentia que lhe ensinava mistérios de Ísis. Poderia ocorrer também que na leitura de um texto bíblico uma parte da comundiade se desligasse do culto e ficasse pensando na volta de Jesus e resultado: dois conhecimentos enciclopédicos distintos na mesma igreja ...);

Se aplicarmos estes fatos teóricos ao nosso trabalho de leitura, dois mil anos depois da escrita do texto, em outra cultura, com outra língua, com outras técnicas interpretativas, etc. etc., as diferenças entre nossa interpretação e a do próprio autor ou as dos primeiros leitores tendem a ser imensas. Em outras palavras, a descrição da identidade de Jesus que enxergo em Mc 1,9-11 pode ser absolutamente diferente da intencionada por Marcos ou da reconhecida por "sua" comunidade de primeiros leitores. De modo semelhante, minha leitura de Mc 1,9-11 não será idêntica à do Leonel, ou à do Paulo, ou à sua, cara leitora ou caro leitor ...

Caímos então no relativismo (o demônio que atormenta os preocupados exegetas e teólogos)? Não. Caímos em nós mesmos, apenas. Damos conta da finitude de nossa vida e da nossa leitura. Damos conta da precariedade de nossa "Verdade". Damos conta da fragilidade de nossos saberes. Se lidarmos bem com isso, aprenderemos a dialogar e a aprender uns com os outros. Se não, tentaremos classificar as pessoas entre as "como nós, que conhecem a verdade" e as "diferentes de nós, que não sabem nada"...

Nenhum comentário:

Postar um comentário