sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Mito e Linguagem, outro olhar

O Leonel apresentou uma visão da linguagem a partir de texto de N. Frye, em que ele propõe uma descrição totalizante da linguagem, em modo evolutivo e moderno. Desejo dialogar com essa proposta de modo relativamente oblíquo, na medida em que o faço a partir de uma descrição alternativa, não evolutiva e, talvez, não tão moderna da linguagem.

Prefiro pensar a linguagem a partir do diálogo com pensadores como Charles S. Peirce, Ludwig Wittgenstein, Donald Davidson e Algirdas Greimas. Para tal tipo de pensadores (e eles não concordam entre si ...), a linguagem tem de ser pensada a partir do processo comunicativo que se caracteriza pela intersubjetividade no mundo (físico, social, cultural...). Em tais teorias, o foco se desloca da evolução dos modos de linguagem (que para eles não faz sentido) para os usos concretos da linguagem em seus variados contextos intersubjetivos. Em outras palavras, diferentes tipos de linguagem sempre coexistiram e atenderam a diferentes necessidades e expectativas comunicacionais em arranjos diferenciados ao longo do tempo e espaço.

Por exemplo: quando egípcios, israelitas, cananeus (etc.), nos tempos bíblicos, precisavam resolver problemas “práticos” (tais como construir uma casa, plantar um campo, colher uma lavoura, vencer uma batalha, etc.), eles utilizavam os jogos de linguagem apropriados para tais problemas, dentre os quais, o jogo “descritivo” ou “racional-instrumental” das relações de causa-efeito, cálculo e objetividade. Eles não eram pessoas pré-racionais que somente jogavam o jogo poético da linguagem. Eles sabiam articular os diferentes jogos necessários na realização das diversas atividades e ações da vida em comum. Por exemplo: ao entrar em batalhas, a preparação prévia em oração, consulta a oráculos, sacrifícios (etc.) não substituía o treinamento militar, as estratégias de confronto, a inteligência (etc.).

Em que se diferenciavam, então, os “antigos” de nós “modernos”? Basicamente no modo de articular os diferentes jogos de linguagem envolvidos na consecução das ações e atividades da vida em comum. Por exemplo: os racionalistas modernos negaram igual validade aos jogos de linguagem por eles nomeados como “não-racionais” (em que não predominam cálculo, objetividade, causalidade) e, em escala ainda mais inferior, aos nomeados como “irracionais” (em que cálculo, causalidade e objetividade são subordinados a desejo, passionalidade, subjetividade). A fim de outorgar validade superior (ou única) a seu jogo preferido de linguagem, os racionalistas desqualificaram os outros jogos e criaram a ilusão de que o que eles faziam não era um jogo de linguagem, mas o único uso verdadeiro da linguagem.

Daí terem eles inventado as oposições binárias irredutíveis a partir das quais iniciamos as discussões sobre mito e bíblia – história versus mito; razão versus fé; objetividade versus subjetividade; ciência versus fantasia; etc. Os anti-racionalistas entraram no jogo com a mesma atitude e só reverteram a polaridade dos binarismos, atribuindo valor positivo ao mito, a fé, à subjetividade e à fantasia – e valor negativo aos seus opostos.

Concluindo a minha fala-escrita para que a discussão possa continuar. Não vale muito a pena, então, pensar no mito como um modo de pensamento distinto da razão, ou da história; nem como um gênero textual específico que trata de deuses e monstros; nem como a verdade em oposição à falsidade racionalista. O que chamamos de mito é apenas um dos variados jogos de linguagem que jogamos constantemente em nossos esforços de comunicação com outras pessoas na busca de nossos objetivos de vida. A tarefa “científica” (do jogo científico de linguagem) seria, então, descrever o jogo mítico da linguagem e suas articulações possíveis com outros jogos de linguagem – mas sempre a partir de situações comunicacionais concretas. (Por isso em meu post anterior fiz questão de frisar o modo “exagerado” da minha argumentação, que visava ressaltar a inadequação da discussão da questão a partir do binarismo, pois não estava jogando o jogo científico ...)

5 comentários:

  1. Júlio,

    saudações.

    Até que ponto você considera que o realismo crítico pode ser uma via boa para lidar com isso na linguagem, aplicando-o ante ao binarismo entre as posições objetivistas e congêneres, e ante as posições instrumentalistas e analistas linguísticos, que de certa forma ambos desembocam, ao meu ver, num "conflito" ou "independência" entre a razão instrumental e outras?

    Abçs, e parabéns, parabenzasso, a vocês três por seu biblioblog fantástico e sui generis.

    ResponderExcluir
  2. Rodrigo, uma resposta "acadêmica"... depende do que você entende por realismo crítico. Minha própria posição filosófica sobre a realidade pode ser chamada de "realismo crítico", posto que acompanho H. Putnam e J. Habermas (entre outros) nesse tópico. Já o "realismo crítico" dos velhos escoceses (séc. XVIII-XIX) não me parece uma boa via ...
    Abs e grato pela participação em nosso blog!

    ResponderExcluir
  3. Grande Júlio,
    obrigado pela atenção na resposta. Mas bem, eu teria por referência as discussões mais contemporâneas, Roy Bhaskar, George Santayana, entre outros. Interessante que temos John Polkinghorne e Arthur Peackoke que desenvolvem ótimos diálogos nesta perspectiva entre "ciência e religião".

    Eu vejo que na área da linguagem, quem oferece bons ganchos é o MacIntyre, com uma ótima apropriação por Paul L. Holmer para a teologia e seus escopos. Porque abandonando o positivismo lógico, também consideraria igualmente ingênuo o construcionismo radical que impera muito hoje nos estudos literários; e vejo que acaba que separa as coisas em departamentos estanques, independentes, sem considerar as interações por ambas terem alegações e crenças sobre o mundo, lidando com muitos âmbitos em comum no mundo; como dizia um colega, "se a matemática for só uma construção, troco errado é quebra de paradigma", rsrs.

    Abçs

    ResponderExcluir
  4. Rodrigo,
    Lemos gente diferente, o que não é nada estranho. Só discordo da adjetivação "mais contemporâneas", pois Putnam e Habermas estão bem vivos e escrevendo, o que não se pode dizer de Santayana ...
    Quanto à linguagem, além dos dois mencionados, meus estudos passam por Davidson, Rorty, Apel, Greimas, etc.

    ResponderExcluir
  5. Sim Julio,rs, mas houvera um mal-entendido. A referência à "mais contemporânea" teve a ver com sua indagação mencionando as linhas do século XIX, e não ao Habermas.
    Não sou da área, apenas leitor interessado, e só pude ler desses outros o Richard Rorty, acompanhando algo dele mais indo adiante com o Charles Taylor em "Argumentos Filosóficos".
    De qualquer forma, servem somente para ajudar a dar uma idéia geral a quê estou tratando. Então, o quê acha desta proposta, na questão específica de uma via média de abordagem ante o binarismo entre os analistas linguísticos ( e mais além, a moda derridista no Brasil) e os positivistas?

    ResponderExcluir