sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Quando o amor é o centro...

Belíssimo e dificílimo o texto escolhido pelo Júlio.

Acho que todos sabemos das dificuldades a respeito da canonização de Cantares e de como ele foi recebido a partir de uma leitura alegórica - judeus: Deus e Israel; cristãos - Cristo e a Igreja, que visava desviar o desconforto sentido diante de um livro bíblico que fala sobre amor/sexo.

Há, também, homéricas discussões a respeito da estrutura de Cantares. Temos dois personagens: Salomão e a Sulamita; ou três: Salomão, a Sulamita, e o pastor, sua paixão? Neste segundo caso, Salomão é o vilão que deseja roubar a moça e levá-la para seu harém.

Mas essa leitura pressupõe um enredo bem elaborado. No entanto, outros intérpretes vêem o livro como uma coleção de canções de amor sem maiores nexos.

Portanto, a questão interpretativa é séria e complexa. O que me parece é que não é possível manter a intepretação alegória, seja judaica ou cristã. Desta última entendemos, pelo menos na prática. O viés moralista e puritano de muitos se escandaliza com um texto que fala de amor. Amor, paixão, e nada mais.

Isso é claro. Afinal, em um contexto onde tudo é visto como serviço a Deus e do ponto de vista de uma missão a ser cumprida, onde a própria família tem como "tarefa e missão" propagar o conhecimento de Deus, como fica esse negócio de amor, ou pior, de sexo? E mesmo explícito.

Acho esse livro fantástico por isso mesmo. Ele não opera a partir de uma ótica missiológica ou de uma ética de serviço a Deus. Há aqui uma inversão. O tema é o amor. Desejado, correspondido, não correspondido. Amor carnal, desejo, e outros termos mais quentes...

Muitos se constrangem com isso. E têm uma vida conjugal, sexual, de intimidade detonada. Nessas questãos, o moralismo não adianta nada.

Acho que por isso mesmo o texto escolhido pelo Júlio apresenta uma expressão: "Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira" (8.4), que é meio inigmática, mas que é, ao mesmo tempo, importante, pois se repete em 2.7 e em 3.5.

O amor é fogo e forte como a morte (8.6). O que fazer? Bem, a tradição puritana e moralista tem tentado aplacá-lo com leis e regras. Sem sucesso.

Mais importante do que isso é humildemente ter ciência do seu poder. O poder que faz com que a moça anseie por beijar seu amado, mesmo na rua, e por isso deseja que ele seja seu irmão, única possibilidade de duas pessoas se beijarem em público no antigo Israel. Ela deseja levá-lo para a casa da mãe, deseja um canto para fazer sexo com ele. É isso!

Ela é uma mulher tomada pelo amor, pelo desejo. Isso é errado? Talvez para alguns. Mas, para o livro, é uma realidade. É o amor e o desejo como centro da vida. Isso é errado na ótica cristã? Talvez. Mas é um fato vivido por muitos de nós. E aí compreendemos o que se diz no livro: há tempo certo para despertar o amor. Uma vez desperto, ele é um poder incontrolado.

Isso pode fazer mal? Pode, claro. Mas pode fazer bem, muito bem. Ao coração e ao corpo.

Precisamos ler Cantares. Sem amarras, com coragem, sem medo ou vergonha. Redescobrir os prazeres e a sacralidade do amor.

2 comentários:

  1. Esse texto que vcs propoem é excelente para mostrar como na Bíblia Hebraica não existe a idéia intransigente que o ato sexual seja, em qualquer modo, um pecado. Só no período mais tardio, com a apocalíptica, entrou o conceito da natureza caída, do pecado original, do ser humano nas mãos do mal. Se observarmos alguns textos proféticos e, sobretudo, o Cântico dos Cânticos que vcs tratam, a dimensão erótica representa um dos aspectos da experiência humana escolhido com o objetivo de ilustrar algumas dimensões fundamentais da relação entre Deus e o seu povo. O gnosticismo influenciou sobremaneira a moral cristã sobre a sexualidade – e também a filosofia grega - , criando uma tendência que almeja, em linhas gerais, a um mundo espiritual, sem corpo em modo geral e, particularmente, assexuado. Mas não dá para transformar o ser humano em um anjo: ele será sempre um animal espiritual. A tradição midrashica talvez nos ilumina e dá uma pista para a nossa reflexão. De fato, essa tradição diz que, quando homem e mulher se unem com amor e em santidade, a Shekinah desce sobre eles.

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  2. Luiz,

    Muito obrigado por teu comentário. Concordo plenamente com você e achei muito proveitoso o que escreveu.

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