quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Filemon e as estruturas frágeis do cristianismo

Como disse na mensagem anterior, a carta a Filemon, por constar como último escrito de Paulo, ocupa igual papel de importância. Afinal, pensariam os responsáveis pelo fechamento do cânon cristão: " - o que teria um texto de cunho pessoal a dizer dentro da Escritura Sagrada?"

Tem, e muito a dizer. Não em uma perspectiva teológica abstrata, ocupada em determinar e descobrir o que passa pela mente de Deus e quais suas ordenanças para os seres humanos. Tem a dizer quando pensamos o cristianismo como um grupo de seguidores de Jesus que vivem historicamente em tensão dialética com a sociedade e consigo mesmo, como indivíduos e como um grupo com identidade própria.

É nesse contexto que vale a pena analisar Filemon. O Júlio seguiu um caminho: a relação pessoal - institucional. Eu tomo outra trilha. A das relações frágeis do cristianismo apresentadas na carta.

E aqui há um dado importante, que é reconhecer como o social é incorporado no literário. Em outras palavras, como os dados de contexto e determinação histórica e social são inseridos e, portanto, manipulados, retrabalhados no texto que lemos, propondo, a partir daí, outra realidade social.

Vejam o termo "prisioneiro". Paulo utiliza-o para referir-se a si mesmo como "prisioneiro de Cristo" (v.1 e 9), embora ele seja, de fato, prisioneiro do império romano. O termo é usado também em relação a Epafras, "prisioneiro comigo" (v. 23). Em que sentido? Prisioneiro em Cristo como Paulo? Ou prisioneiro do império, assim como Paulo? Nesse campo semântico podemos mencionar "escravo" (v. 16), atribuído a Onésimo em sentido concreto.

Mas o "prisioneiro" Paulo pode ter um "servo" (v. 13), referindo-se à gratidão da qual Filemon lhe é devedor, mas que é vivenciada por Onésimo, pelo menos por um tempo. Paulo, prisioneiro, sente "liberdade" para "ordenar" algo a Filemon. Ao mesmo tempo, o "escravo" Onésimo deve ser recebido por seu senhor como "irmão caríssimo" (v. 16).

As referências acima demonstram como os elementos concretos são retrabalhados por Paulo gerando, por vezes, novos sentidos, e às vezes sentidos ambíguos. O que determina essas escolhas? A visão "teológica" que coloca todos em um mesmo nível, como cristãos e, ao mesmo tempo, apresenta escala de valores, sendo Paulo, apóstolo, alguém com autoridade sobre outros cristãos.

Essas relações teológicas, no entanto, não são fixas, determinantes. Elas também assumem aspectos dinâmicos e tensos. O apóstolo espera "obediência" de Filemon ao receber novamente Onésimo. Mas ele "espera". Não pode exigir. Filemon ainda detém o poder supremo sobre seu escravo a partir das leis romanas. Cabe a ele decidir se abrirá mão de seu direito ou não. Mesmo o apelo a Filemon para que lembre que deve serviço de gratidão a Paulo é apenas um "apelo", sem força de ordenança.

Portanto, a carta releva que o cristianismo opera a partir dos elementos contextuais em que vive, sejam eles concretos ou simbólicos. Sobre ou ao lado deles, constrói uma visão própria de mundo que, para existir e funcionar, "depende" da adesão dos seguidores. Por isso mesmo, o cristianismo se constrói a partir de "estruturas frágeis" que não podem ser negadas.

Isso é muito importante em tempos em que o denominacionalismo, com suas doutrinas, definições e cargos tem se tornado mais importante do que o cristianismo; em tempos em que profetas, apóstolos e sei lá mais o quê tem se dado o direito de dirigir vidas de pessoas e determinar o que devem fazer ou não. Tudo isso é uma negação do caráter frágil do caminho de Jesus em que somos chamados a seguir.

Por isso mesmo é necessário fé, tolerância, humildade e amor. De todos para com todos. Quando essas características cristãs são abandonadas, surge a sombra negra e tenebrosa das instituições religiosas a oprimirem os cristãos e a sociedade.

5 comentários:

  1. Kharis kai eirene

    Prezado Leonel, sempre sou surpreendido por sua análise segura e conscienciosa.

    Um abraço

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  2. Tendo acompanhado os estudos biblistas recentes sobre as relações do ministério e pregação de Paulo, e do contexto das especificidades galilaicas refletidas na relação do ministério e pregação de Jesus para com as estruturas clientelistas imperiais, somando com muitas de suas preciosas análises, como esta, Leonel...

    tenho cada vez mais chegado a aterrorizante constatação de que viver o cristianismo hoje é muito difícil...e um dos grandes obstáculos têm sido as teias de poder das igrejas, suas retóricas, e suas relações com a "religião imperial" de hoje...

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  3. Rodrigo,

    Fico contente em saber que tem acompanhado nosso blog. Obrigado pelas observações. Quando puder, contribua com maiores especificações a respeito de tuas pesquisas.

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  4. Oi João Leonel,

    gosto muito dos seus diálogos e da abordagem inovadora dentre os biblioblogs brasileiros.

    Quanto as minhas recentes leituras paulinas, tenho acompanhado as obras editadas por Richard Horsley que contam com contribuições de diversos pesquisadores de formações diferentes.

    Tenho o "Paul and the Roman Imperial Order", e o publicado pela Paulus, "Paulo e o Império: Religião e poder na Sociedade Romana". Também relativo ao que tinha postado, "Paulo: uma biografia crítica", de Jeromy Murph-O'Connor, da Loyola. "The Book of Acts in its Palestinian Setting", editado pelo Richard Bauckham.

    Qto a Jesus, "Jesus e a Espiral da Violência", do Richard Horsley, e dele também, "Arqueologia, Sociedade e Cultura na Galiléia". Ambos Paulus. O livro 3 vl 1 de "Um Judeu Marginal", do J.P. Méier. "Jesus and the People of God", do N.T.Wright. "Jesus, o Galileu" de Senen Vidal, da Loyola. Agora encomendei de auto-presente de Natal o "The Social Setting of Jesus and the Gospels" editado por Gerd Theissen, Bruce Malina e Wolfgang Stegemann, que ainda vai chegar.

    São aqueles que têm me subsidiado mais nas reflexões que lhe mencionei. Situando a história recente que precedeu o ministério de Jesus e Paulo, os perfis diferentes das comunidades, regiões e cidades, econômico e cultural, as particularidades das identidades galilaicas em relação à judéia, as estruturas de coesão social e política nas cidades que Paulo se relacionou, etc.

    Fica aí as figurinhas. Abraços!

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