terça-feira, 23 de novembro de 2010

Filemon e a estrutura eclesiológica do cristianismo primitivo

Se no post anterior discorri sobre os aspectos frágeis que envolviam o cristianismo nascente e que podem ser discernidos na pequena carta a Filemon, neste irei focar, por outro lado, um aspecto estrutural positivo desse cristianismo. Isso significa que os primeiros cristãos viviam em uma espécie de dialética existencial, se equilibrando entre elementos sensíveis e frágeis, por um lado, e usufruindo de estruturas estáveis, por outro.

Abordo a organização eclesiológica do cristianismo daqueles tempos. Não em termos de dons, funções, teologia etc. Mas de um ponto de vista mais concreto: a existência e vivência real dos grupos cristãos. Para isso, tomo especificamente o papel de Filemon como exemplo.

Inicialmente, alguns dados: Filemon é um colaborador de Paulo (v. 1); recebe uma igreja em sua casa (v. 2); tem reanimado o coração dos santos (v. 7); deverá hospedar Paulo no futuro e deveria receber com frequência outros pregadores itinerantes (v. 22).

Essas informações permitem concluir com uma boa dose de certeza que ele era o responsável, o líder da igreja doméstica em sua casa. Ele seria, então, o pastor dessa comunidade. Ou, para usar o termo neotestamentário, o presbítero dela.

E aqui abordo a questão estrutural. O cristianismo primitivo herdou a estrutura das famílias grego-romanas e hebraicas. Era costume do apóstolo Paulo se hospedar em casas e geralmente seus membros eram convertidos (At 16.15, 33; 18.8). São comuns também as citações a igrejas domésticas em seus escritos (Rm 16.5 [os "irmãos que se reúnem com eles" também diz respeito às igrejas domésticas - Rm 16.14, 15], Cl 4.15).

É necessário dizer primeiramente que essas famílias eram diferentes de nossa família nuclear organizada a partir de pai-mãe-filhos. Elas eram constituídas pelo páter-família, o chefe e responsável; pela esposa e filhos; por escravos; por parentes; e por amigos. Em geral essa família possuía um comércio que funcionava na própria casa, que era grande e comportava entre 40 a 60 pessoas.

O que me ajuda entender esse tipo de família são a famílias de coronéis do ciclo do café paulista do sec. XIX e início do XX. A estrutura era semelhante. Tanto nesta quanto na família greco-romana os parentes e amigos poderiam participar do negócio da família ou então serem prestadores de serviço em troca de acolhimento e proteção.

Isso significa que esse tipo de família não funcionava unicamente a partir de laços de sangue, mas de relações sociais e econômicas que traziam estabilidade e segurança ao grupo.

O cristianismo, como disse, assumiu essa estrutura e isso foi muito importante. Vejam como as figuras de páter-família e presbítero são praticamente idênticas em 1 Tm 3.1-7 (ali "bispo" é sinônimo de "presbítero", como ocorre em Tt 1.1-7). O governo e liderança familiar são centrais, também o testemunho da sociedade é fundamental. Notem como se dá a relação no v. 5: o presbítero precisa saber governar sua casa para poder governar a igreja de Deus. Por quê? Simplesmente por que a casa se torna a igreja!

Por isso mesmo o relacionamento de Timóteo com os crentes deve ser aquele das relações familiares (1 Tm 5.1-2), e as orientações familiares visam todos: maridos, mulheres, filhos e escravos. Por quê? Por que essas relações se estruturam dentro da família/igreja e elas podem definir o sucesso ou insucesso de ambas.

Como fiz referência anteriormente, quando o páter-famílias se convertia todos os membros da casa o seguiam: esposa, filhos, parentes, amigos e escravos. Toda a estrutura da casa era afetada. No entanto, havia casos raros em que alguém não adotava a religião da casa, ou então, um membro de uma casa não cristã se tornava cristão. Isso gerava tensões, como pode ser visto em 1 Pe 2.18-19; 3.1.

Bem, voltemos a Filemon. Provavelmente ele era o presbítero/pastor da igreja doméstica de sua casa (embora o título não seja usado para ele, possivelmente pelo fato de que Paulo não queria enfatizar esse aspecto). Onésimo, exceção à regra, não aderiu à fé e, o que é pior, fugiu. O que fazer?

A questão não era apenas de relacionamento entre senhor - escravo. Era entre um líder cristão e alguém que estava submetido à estrutura dirigada por ele. A decisão de Filemon, castigar o escravo fugido ou perdoá-lo e recebê-lo como irmão em Cristo afetaria todo o grupo familiar/cristão reunido em sua casa. Afinal, se houvesse outros escravos, como eles reagiriam? Como os outros membros da casa julgariam a atitude de Filemon?

Nesse caso, a estrutura da igreja doméstica era muito importante. Qualquer que fosse a decisão de Filemon, provavelmente ela não seria questionada, nem pelo apóstolo Paulo. Ele possuía o direito espiritual que provinha de uma estrutura já estabelecida e central para toda a sociedade. Nesse caso, posso dizer mesmo que a autoridade espiritual derivava e tinha como suporte a autoridade familiar e social.

Essa estrutura foi responsável pelo desenvolvimento do cristianismo. Ela proveu estruturas para os cristãos, segurança para pregadores e apóstolos itinerantes, e mesmo respeito social diante de outras famílias.

Penso em nós hoje e acho que a inexistência de tal estrutura (e julgo ser impossível resgatá-la) é um dos pontos responsáveis por insucessos da igreja.

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