sexta-feira, 9 de abril de 2010

Gênesis 22, fidelidade e nosso incômodo

Júlio salientou em suas duas últimas mensagens o caráter tenso e dramático de Gn 22 que exige de Abraão uma postura melhor definida por "fidelidade" do que por "fé".

A tensão, como já comentei anteriormente, se manifesta pelo segundo plano ambíguo, cheio de sombras, no qual Abraão é lançado quando Deus se ausenta da cena. Mas o caráter intenso do drama se verifica por outros elementos textuais. Por exemplo, a qualificação de Isaque por Deus, como:
"teu filho,
teu único filho
a quem amas" (Gn 22.1).

O paralelismo das linhas acentua o drama. Ele não é apenas "filho" de Abraão. É o "único" filho, filho da promessa, é aquele a quem ele "ama". É esse mesmo que deve ser sacrificado!

Outro dado intensificador do enredo é a informação de que Abraão levantou-se "de madrugada" que, como salientou Auerbach, não é um dado temporal apenas, mas salienta a disposição do patriarca de cumprir imediatamente a ordem que recebera.

Intensidade semelhante, mas repleta de uma perspectiva psicológica, é sua fala aos servos: "Esperai aqui, com o jumento; eu e o rapaz iremos até lá e, havendo adorado, voltaremos para junto de vós" (v. 5). Mas como voltariam após a adoração, visto que o ato de adorar se concretizaria no sacrifício do filho? Como o ato que tira é o mesmo que devolve? Obviamente aqui não estão em jogo complexos de raciocínio linear, lógico, mas a revelação de uma mente e de um coração em crise, operando assistematicamente, criando sua própria lógica.

Digo isso tudo para ressaltar a importância daquilo que Júlio julga, ao meu ver corretamente, como a questão central da narrativa: a fidelidade.

Fidelidade nunca se manifesta de um lado apenas. Quando isso acontece, ela já se quebrou. Fidelidade pressupõe dois lados, dois sujeitos que se relacionam. No caso do texto bíblico, ela caracteriza a relação entre Deus e Abraão no contexto de aliança (Gn 15.12-21), que, semelhante ao texto que estamos discutindo, apresenta também o elemento do terror ("grande pavor e cerradas trevas o acometeram" - 15.12).

Por que Abraão é fiel a Deus e este ao ancião? Por que eles possuem um compromisso de relacionamento, de convivência. E, todos sabemos, os relacionamentos se desenvolvem, se avolumam, se aprofundam, manifestando facetas novas e aspectos não conhecidos daqueles em interação.

Relacionamentos baseados apenas naquilo que conhecemos, em definições e expectativas criadas a partir de uma avaliação estática das pessoas, tendem a esmaecer e, finalmente, dissolverem-se na dinâmica da vida.

Com Deus e Abraão não era assim. Eles estavam em aliança, tinham compromisso um com o outro, eram fiéis mutuamente. E isso fornecia o suporte para que se revelassem a cada dia, para que se conhecessem, se assombrassem um com o outro.

Acho que é esse aspecto, que o Júlio detectou na citação de Temor e Tremor, que está em jogo. É a fidelidade que dá suporte para que a vida se construa, amadureça, permita um novo fôlego quando estamos trôpegos.

Penso que esse é um dos equívocos que o cristianismo contemporâneo comete, principalmente aquele que tem como núcleo central a aliança que o cristão faz com Deus. Julgamos que pelo fato de Deus se revelar a nós ele tem a obrigação de se dar a conhecer totalmente, de se tornar previsível. Mas isso não é verdade. A realidade de nossas vidas demonstra isso e, acima de tudo, a revelação máxima de Deus não permite questionamento: Jesus Cristo.

Como, em Jesus, nos relacionamos com Deus? Caminhando com ele, sendo discipulados por ele. Mas isso não acontece quando estamos acomodados em nossas casas, em nossas igrejas, cercados de seguranças. O discipulado está vinculado intrinsecamente ao "caminho". Não há discipulado sem disposição para caminhar com Jesus Cristo. A fidelidade somente ganha contornos quando nos dispomos a nos tornarmos discípulos que estão "no caminho" com Jesus. Mesmo que o caminho nos leve ao altar do sacrifício.

Uma resposta não-programada

Postei um comentário mais longo sobre Gn 22, abordando o que considero ser o tema principal do relato - a fidelidade. Cheguei a essa conclusão há algum tempo e toda vez que releio o texto imagino que estou num bom caminho de interpretação, caminho que me deixa algo angustiado, embora feliz, por que levanta interessantes questionamentos para a experiência e o discurso teológico protestante-evangélico do qual participo.
Esse post estava pronto antes do Paulo escrever sobre o humor e o Leonel responder com Kierkegaard, mas no final das contas, sem programação prévia, é um post que conversa com os outros dois.
No tema da fidelidade de Elohim-YHWH em Gn 22 também encontro os dois elementos presentes na postagem do Paulo: terror e humor (o primeiro deles certamente aparece em Kierkeggard com seu Temor e Tremor, o segundo também está lá, talvez menos visível, mas não menos risível no Isaque desmamado). Não há como fugir do escândalo proposto pelo texto bíblico: Elohim-YHWH diz a Abraão para sacrificar seu filho. Mesmo que não tenha deixado que Abraão o fizesse, a ordem por si só é assustadora. E, mais tarde, pela leitura cristã, o que Elohim-YHWH não permitiu a Abraão que fizesse, ele mesmo o fez entregando seu unigênito à morte. Terror só se enfrenta adequadamente com humor e humor só encontra seu limite diante do terror - não será por isto que tragédia e comédia sejam gêneros gêmeos?
Olho para Kierkegaard. Luterano imprevisível, o texto dele citado já tematizava a fidelidade, mas sob o manto da "fé". Fé, principalmente por causa de Lutero e da Reforma, tornou-se uma obsessão protestante-evangélica. Obsessão tão intensa que se tornou um termo vazio para descrever um sem-fim de experiências religiosas díspares (já Bonhoeffer no século passado, em meio ao terror do nazismo, refletia sobre o sem-sentido da "fé"). A fé, conforme se pode perceber no discurso devocional protestante-evangélico, é um ato pontual e intermitente: a gente tem fé na hora da conversão, depois tem fé na hora da santificação, ou na hora do batismo com o Espírito, depois tem fé na hora do avivamento, mais tarde tem fé na hora de conseguir uma resposta para a oração, etc. até, ao final do percurso (para alguns pelo menos), ter uma fezinha para ganhar uam graninha. Fé não é fé em Gn 22, é fidelidade, que é uma paixão de outro tipo: não é pontual ou intermitente, é durativa e constante em todos os seus altos e baixos. Parece-me que é nesta direção que o texto kierkegaardiano citado nos leva a olhar. Mesma direção que outros dois textos sugeriram em uma instigante conversa que ficou truncada pela obsessão com a fé - não é verdade que "o justo se torna justo por sua fidelidade"?

quinta-feira, 8 de abril de 2010

O sacrifício de Isaque e Kierkegaard

Apreciei muito a mensagem do Paulo Nogueira lembrando a recepção de Gn 22 por Saramago e as abordagens da literatura bíblica por Moacyr Scliar.

Concordo plenamente que é necessário espanar a seriedade sombria que nos cerca na interpretação bíblica. Não que os textos bíblicos não sejam sérios. Eles o são. Mas essa seriedade, como comentou o Júlio em sua mensagem, precisa ser revestida de outro elemento igualmente sério: o humor. Nesse sentido, a pesquisa bíblica já reconheceu a algumas décadas o papel de importância da ironia nos textos bíblicos.

Já se disse que em uma piada há muita coisa séria. Concordo. Talvez as coisas mais sérias que dizemos o sejam em tom de brincadeira, de piada. Mas eu quero, continuando a dialogar com a recepção de Gn 22 proposta pelo Paulo, lembrar o livro de Kierkegaard: "Temor e tremor". (pode ser encontrado em: http://www.scribd.com/doc/7607080/Kierkegaard-Diario-de-Um-Sedutor-Temor-e-Tremor-O-Desespero-Humano).

Nesse livro o filósofo apresenta quatro versões alternativas ao texto bíblico. Todas com finais diferentes. Todas apresentando, ao final, o desmame de Isaque pela mãe. Achei instigante. Vale a pena ler. Na sequência Kierkegaard apresenta uma profunda discussão sobre a fé de Abraão. Apenas uma frase: "Não sucedia assim antigamente; era então a fé um compromisso aceite para a vida inteira; porque, pensava-se, a aptidão para crer não se adquire em poucos dias, ou escassas semanas. Quando, depois de ter combatido em luta leal e conservado a fé, o velho lutador experimentado chegava ao acaso da vida, o coração mantinha suficiente juventude para não esquecer o tremor e a angústia que o tinham disciplinado enquanto jovem e que o homem maduro havia dominado, porque daqueles ninguém se livra
inteiramente a menos que consiga ir mais longe desde muito cedo".

Acho que essa citação propõe questões para serem desenvolvidas.

Que deus é este?

A leitura de Gn 22,1-19 incomoda. Na superfície narrativa do texto, Deus se apresenta como íntimo de Abraão, chamando-o para conversar à noitinha. Íntimo, mas perigoso, pois tenta (ou testa?) Abraão a fazer o seu filho único, o filho prometido, subir (a raiz hebraica que se traduz por holocausto aqui, por influência da LXX e do NT gregos, se usa predominantemente para “subir”) aos céus como fumaça sacrificial para agradar o olfato divino (note como este início retoma o início do capítulo 12, em que Deus também chama Abrão perigosamente, com um convite para se tornar sem-teto, sem-terra, sem-família). Abraão não contesta a ordem de Deus (diferentemente do episódio da destruição de Sodoma e Gomorra, por exemplo). Mesmo quando Isaque (desconfiado?), pergunta ao pai pelo animal sacrificial, a resposta de Abraão é evasivamente crente – “Deus verá para si o cordeiro” (o verbo ver exerce papel fundamental neste episódio, assim como nos episódios relativos a Hagar e Ismael, o que se dilui na tradução “proverá”).
Dada a tentadora ordem, Deus some do cenário narrativo, reaparecendo apenas na fala de outros personagens. Nem mesmo para impedir Abraão de sacrificar Isaque Deus se digna a aparecer - envia um mensageiro, meio que de última hora, pois ele sai berrando do céu para que Abraão não desça a mão armada sobre o rapaz amarrado sobre a lenha. Quando o mensageiro grita para impedir o assassinato de Isaque, a justificativa é: “agora sei que temes a Deus” (uma exegese normal interpreta este temor como devoção, mas me pergunto, não seria melhor a gente ver aqui o medo mesmo?), sugerindo que Deus, mesmo após décadas de intimidade com Abraão, ainda não o conhecia. Por fim, de Deus o mensageiro diz que iria abençoar Abraão e sua descendência, retomando a promessa de Gênesis 12 ao Abrão aventureiramente crente.
Um olhar semiótico não se contenta com a superfície. Sempre quer ir mais fundo, desenterrar sentidos ocultos na visibilidade textual. É um tique algo “caçadores da arca perdida”. Para dar um rótulo mais dignificante, é um hábito anti-racionalista, além-moderno, pós-positivista. Para semioticistas, superfícies textuais (narrativas, poéticas ou conceituais) sempre encobrem, revestem, ocultam sentidos que estão dispersos nas teias da cultura ou aprisionados nas grades das instituições da Verdade. Não se trata de adivinhar o que está encoberto, mas de perquirir, perscrutar, “ir a fundo” dir-se-ia na linguagem acadêmica ou popular. Trata-se, de descobrir a temática oculta na figuratividade, trata-se de mergulhar, do trampolim discursivo, para os mares narrativo e profundo (alguns semioticistas falam em até seis níveis do percurso gerativo). Meu palpite?
Esta superfície figurativa oculta uma face de Deus que se revela escondidamente em toda a Bíblia. Elohim-YHWH (na exegese histórico-crítica teríamos de desencavar fontes e tradições) é fiel – ele cumpre o que promete (ou Ele faz o que ameaça), mesmo que entre a promessa e o cumprimento haja tantas tramas e tremas que a gente se esqueça do que é que realmente se está falando. Ele é “o mesmo, ontem, hoje e sempre”, mas não a mesmidade metafísica impassiva, impessoal. Elohim-YHWH não muda seu jeito de se relacionar com seus parceiros e parceiras – sempre tes(n)tando, acompanhando, abençoando, surpreendendo. Elohim-YHWH é teimosamente o mesmo, embora quase nunca a gente saiba o que é esse mesmo (que não é mesmice, o orgasmo fundamentalista, cientificista, positivista ...).
Sendo deus fiel, Elohim-YHWH espera de Abraão fidelidade, e fidelidade (ao contrário da obediência e do medo) não é algo que se consegue a partir da hierarquização e institucionalização das relações humanas. Fidelidade só se configura no sinuoso trajeto da relação pessoal entre parceiros iguais-na-diferença. Incidentalmente, mas não acidentalmente, uma das frases que se repete no texto, com Abraão e Isaque como sujeitos é “caminharam juntos” (fielmente). Mesma frase que se repete , no final do texto (sem “os dois” dos versos 6 e 8), desta vez com Abrão e os servos como sujeitos. Acidentalmente, mas não incidentalmente, os servos de Abraão não fugiram enquanto o boss estava longe na montanha; ficaram esperando, tomando conta do jumento fujão (não adianta insistir, jamais direi como posso provar que o jumento era fujão).
Será tão simples assim? Sim Esse é um deus fiel.
“Mas ... Mas ... Mas ... o quê”?
Fiel, mas imprevisível. Por toda a Bíblia se aponta, tensamente, titubeantemente, para essa face de Elohim-YHWH. Ele é um deus imprevisível – e pelo menos nisto o tal de Descartes tinha razão: nem Deus pode servir como fundamento para as nossas certezas. Por quê? Oras bolas, por que ele é Deus, nada mais, nada menos. Ele está lá e a gente está cá e entre lá e cá um abismo há. Todavia, como em semiótica o oculto tema nunca é solitário, mas sempre anda acompanhado: Elohim-YHWH é fielmente imprevisível e imprevisivelmente fiel. Fielmente imprevisível, jamais poderá ser manipulado por mãos e mentes e corações humanos – apesar da gente sempre tentar reduzir deus a um mero gênio da lâmpada mágica. Sendo imprevisivelmente fiel, jamais será arbitrário, embora tantas vezes seus atos assim no-lo pareçam. Fidelidade imprevisível que surpreende, renova, inova, regenera. Imprevisibilidade fiel assustadora, desestabilizadora.
Ah! E o que isto tem a ver com a quase-subida do Isaque? No mínimo, que um deus fiel não precisa de fumaças sacrificiais para aplacar suas narinas fumegantes. Como todo texto é um entroncamento, este faz se entrecruzarem textos sobre sacrifício de primogênitos e, definitivamente falando (se é que existe algo definitivo na interpretação), não se coloca na família dos sacrificadores (de animais, ou de crianças – família repleta de membros nas Escrituras judaicas e de outros povos). E o carneiro que subiu? Um palpite: o carneiro é símbolo messiânico de outro que, mediante o auto-sacrifício, deu fim a todo sacrifício. Ou, talvez seja símbolo teofânico a nos dizer que Deus não desaparecera totalmente do cenário, apenas não estava visível a olhos acostumados a procurá-lo nas alturas majestosas. Por que não ambos?
Gn 22,1-19 é um texto com muitos irmãos canônicos, mas, para mim, seus gêmeos são Miquéias 6,1-8 e Filipenses 2,5-11. Revelam um Elohim-YHWH fielmente imprevisível, imprevisivelmente fiel. No sério mundo hierárquico do Estado, Economia, Ciência, Mídia e Religião, a fidelidade é subversiva – ela foge da obrigação contratual e se instaura na relação pessoal. Não se sente bem entre os sisudos apertos de mão institucionalizados, mas fica à vontade entre as risadas de um bom papo entre amigos. Apesar das Instituições sempre tentarem engrandecer Deus à sua imagem, Elohim-YHWH prefere habitar com pequeninas criaturas. Somente um Deus bem-humorado se esconde acima das nuvens e atrás do mato enquanto seu eleito se mata tentando cumprir a satírica ordem de fazer o menino subir.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Humor é coisa séria!

O Paulo deu o pontapé inicial à sua leitura de Gn 22. De Saramago nada falo, porque não o tenho lido ultimamente (o Ensaio sobre a Cegueira me deixou meio cego). Sclyar é outra história. Gosto de seus textos. O livro mencionado por Paulo é de uma beleza intensa. Provoca momentos riquíssimos de reflexão e de prazer.
E aí chego ao humor. Hábitos soturnos de leitura da Bíblia apagaram o humor das páginas sagradas. Hábitos que me fazem ecoar o Eco em O Nome da Rosa que traz a discussão teológica medieval sobre o humor entre ordens religiosas. Nas igrejas o humor não tem muita vez na leitura da Bíblia e na teologia. Possivelmente por isso haja tantas discussões, guerrinhas, intrigas e intolerâncias.
Humor é coisa muito séria, pois ele nos ajuda a não levar demais a sério nossas próprias experiências, emoções, idéias, relações e posses. Vida bem-humorada é vida leve, vida sob a insustentável leveza do ser, como propunha outro leitor-escritor, o Kundera. Leveza que, nas páginas da Bíblia, aparece aqui e acolá, mas me faz lembrar do convite de Jesus para carregarmos o seu fardo - que é leve, pois não tem Lei, Padrão, Regra.
Não é ironicamente engraçado que o Abraão, que tanto rezou para Elohim-YHWH não destruir Sodoma e Gomorra, não tenha dirigido nem uma oração-relâmpago para salvar a vida do seu próprio guri?

O Sacrifício de Isaque: de Auerbach a Saramago.

Gosto muito da abordagem de Auerbach sobre o relato de Gênesis 22, analisado em contraste com a cicatriz de Ulisses, referência ao relato da Odisséia. Com muita sensibilidade ele consegue nos despertar para a sofisticação da narrativa de Gênesis, sofisticação essa que é praticamente desprezada pelos exegetas histórico-críticos, que se interessam muito mais pelos estratos e motivações originais, ou, pelo menos, anteriores ao texto "artisticamente" acabado. Há uma idéia pré-concebida de que o que tem arte não vem do povo ou da história do povo. Qualquer embelezamento estético - e, portanto, sofisticado - do texto procederia da corte. Temos muito a aprender, portanto, com a perspectiva lançada por Auerbach e, a meu ver, brilhantemente seguida e desenvolvida por Robert Alter (A Arte da Narrativa Bíblica. São Paulo: Companhia das Letras, 2008).

Li nas últimas férias Caim, de José Saramago. Foi uma leitura deliciosa e irreverente. Aliás, na linha de Manual da Paixão Solitária de Moacyr Scliar. O último, aliás, muito mais sofisticado e divertido. Trata-se de duas obras que, com muito humor, recriam a subvertem as narrativas bíblicas. Uma escrita por um português "rabugento" que não gosta da Bíblia e do seu deus, outra criada pelo brasileiro de origem judaica que trata suas escrituras com mais carinho. Mas o que os une é o humor. Esta é uma chave hermenêutica preciosa para lidar com o texto bíblico, chave esta que desprezamos sistematicamente nos currículos teológicos, quando não a amaldiçoamos de vez. Mas, pergunto, como é possível lidar com a seriedade dos textos tidos como sagrados, domingo a domingo (pressupondo de ninguém agüente fazer "hora silenciosa" todo santo dia!), anos a fio? E no caso dos exegetas? Cursos de Pentateuco, Sinóticos, Profetas, Cartas Paulinas, a cada semestre, sempre relendo, retraduzindo, revisitando as fichas amareladas? Semestre após semestre? Quem aguenta a santidade destas linhas? Por que não poderíamos rir de textos que amamos, uma vez que os amamos? Rio-me de amigos, rio com eles. Por que não deste texto cujo deciframento me consome mais tempo que o cuidado de coisas essenciais e práticas? Não quero dizer com isso que o texto de Saramago (o mais querido dos "rabugentos") seja um livro de humor. Tem humor, mas quer ser protesto. Mas não funcionou para este leitor aqui como um grande protesto. Mas quase me matou de rir quando, ninguém menos que o assassino primordial, Caim, salva Isaque do golpe fatal que estava por ser desferido pelo seu próprio pai. E os impropérios que solta ao saber que o próprio deus o havia mandado? E quando chega atrasado o anjo que tinha como tarefa salvar Isaque? E tenta, a despeito de seus problemas hidráulicos nas asas, assumir o papel que na verdade foi de Caim? O riso que esta narrativa segunda me causou, me permitiu exorcizar um pouco do horror do original. Me fez sentir um pouco ridícula a idéia de um deus que manda matar o filho único, tema recorrente em toda a Escritura. Me perguntei também se o autor/redator do texto não poderia ter percebido as possibilidades de leitura, inclusive esta, no seu enigmático relato. Se ele não o fez, o texto sim o fez.

No caso dos textos do Novo Testamento me lembrei que faço há alguns anos algo semelhante ao começar meus cursos introdutórios de Sinóticos (ou de Jesus Histórico, no tempo em que acreditava neste tema) com o filme A Vida de Brian, de Monty Python. Como não passar mal de tanto rir com o sermão da montanha (Blessed are the Cheesemakers...)? Mas como também não pensar a história de Jesus a partir dos nós narrativos que o filme nos propõe na história de Brian? Como não renovar o amor pelo texto dos evangelhos após rir um pouco da história que se anuncia trágica e séria? Este riso interpretativo me lembra o riso carnavalesco medieval estudado por Bakhtin. Um riso subversivo, inversor de papéis, renovador de mundo. Renovador de leitura.
Mas ele ainda não me liberta dos horrores da narrativa de Gênesis 22. Isso é outra história. Ele só me habilita para ler mais uma vez.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Olhares enviesados, rupturas que se complementam

Coloco aqui o que já disse no comentário ao texto do Paulo e acrescento algo mais.

Muito interessante a proposta do Paulo e o comentário do Júlio. Elas me fazem lembrar que em meu percurso como leitor/intérprete eu tenho trilhado um percurso que priorizou inicialmente o autor, procurando entender, através do texto, a sua mente. Em seguida, surgiu o texto como elemento prioritário, que determina leituras e orienta leitores. Por fim, me encontro em um percurso onde me pergunto sobre práticas de leituras, nas quais os leitores ocupam o centro, em diálogos às vezes nada amistosos com os textos.

Obviamente, como Paulo disse, somos constituídos pelas leituras feitas, mesmo por aquelas que hoje negamos. Desse modo, o processo se instaura e nos desafia.

Pensando nas rupturas afirmadas pelo Júlio, acho que elas se instituem no momento certo, de modo as vezes doloroso. E mesmo dentro delas há outras rupturas que se manifestam, quando menos, pelo nosso desenvolvimento humano. É muito provável que no exercício de um determinado tipo de leitura, pelo passar dos anos, acúmulo de experiências, experimentemos outrtas possibilidades interpretativas.

Ao final, os olhares enviesados acabam constituindo um foco claro, e as rupturas, ao invés de deixarem fraturas, se complementam naquilo que penso ser o mais importante na interpretação/leitura: vivenciar a experiência do humano proposta pelas Escrituras.

Três olhares, três rupturas

O começo já está estimulando memórias e prazeres. Lendo as postagens do Leonel e do Paulo atravessam meus olhos os diversos tempos e identificações de meu percurso de leitor da Bíblia - da inevitável ingenuidade adolescente à dúbia fé fundamentalista, chegando às diversas rupturas.
Acho que passei por três rupturas: (1) rompi com o fundamentalismo e me tornei freqüentador assíduo dos FA (fundamentalistas anônimos), para não recair; (2) rompi com as exegeses históricas, não por que elas não nos ajudem, mas por que ajudam até demais, quando comecei a praticar exegese contextual e, logo depois, com as "leituras populares"; e, finalmente, por enquanto (3) rompi com a ruptura com as exegeses anteriores, para poder ficar no limiar que, embora pareça, não é a mesmo espaço do "em cima do muro".
Ler a Bíblia me traz cada vez mais sensações prazerosas. O prazer de flertar com o texto; o prazer de aprender; o prazer de ensinar. Agora, então, o prazer de ler em parceria sem saber direito aonde a conversa nos levará.

Da fronteira... um terceiro olhar

O olhar sempre muda, pois sempre temos novos ângulos, nova luz, tudo isso tranformando o cenários e as imagens. Mas também posso dizer que meu olhar atual sobre a Bíblia e sobre o mundo não só está mudando, como também está passado por rupturas. Um dia creio que entenderei as rupturas como um enredo de um conto. A primeira leitura piedosa e curiosa, a segunda insegura e fundamentalista (adolescente, à procura de verdades), depois uma mais existencialista...
Ao dizer que hoje passo por mais uma ruptura não quero dizer que superei as demais ou que as desprezo. O tempo me faz acolher carinhosamente as leituras que fiz, como parte de mim mesmo. Já busquei mais Bíblia, mais história, mais relações sociais. Hoje me vejo assumindo um papel de leitor da Bíblia de fronteira. Ela só pode significar algo (para mim?) como intertexto de outras literaturas. Se os textos não se misturarem, não se confundirem, não produzirão fruto criativo. Por isso tenho experimentado lançar a Bíblia (uma biblioteca) num quarto onde há outras bibliotecas e ver que rearranjos isto dá, que nova Bíblia, para mim, leitor, daí sairá. Esta nova biblioteca é composta por livros de agora e de outros passados, por imagens, por imagens em movimento (com som e com texto). Alguns falam da Bíblia, outros poderiam. Alguma teoria entra neste jogo de rearranjo de biblioteca. Mas como não citei explicitamente nenhum livro, também, por hora, não mencionarei seus autores. O fato é que nesta busca corro atrás de sentido, de beleza, de "arrepio do sentido". Mas também corro atrás de comunidade, sociedade, pois textos estão aí para o deciframento de todos, não de grupos dominicais e profissionais. Estar neste blog com meus amigos Júlio e João Leonel é expressão do desejo de lançar a Bíblia nas margens, no mundo.