sexta-feira, 16 de abril de 2010

"De noite na cama, eu fico pensando ... se você me ama e quando"

O Paulo, de um jeito bonito, descreveu o que, com Peirce, de um jeito não tão bonito, se chamou de "semiose infinita". Ler é uma aventura interminável, uma "história sem fim". E é infinita por que a leitura é uma questão de amor. Uma velha canção de Caetano começava assim "de noite na cama ...". Outra canção, não tão velha, do mesmo Caetano, assim também falava dos livros: "Os livros são objetos transcendentes - Mas podemos amá-los do amor táctil - Que votamos aos maços de cigarro - Domá-los, cultivá-los em aquários, - Em estantes, gaiolas, em fogueiras - Ou lançá-los pra fora das janelas - (Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) - Ou ­ o que é muito pior ­ por odiarmo-los - Podemos simplesmente escrever um...". Só lemos mesmo pra valer os "livros" que nos transcendem e nos fazem transcender, os livros que nos acendem e incendeiam, os livros que amamos e nos amam.
Por isso, ler é algo que fazemos não só com os olhos, mas com o corpo todo, o tempo todo, em todo o tempo. Tá certo, Paulo. Mas, já que você provocou, não é a privada um dos melhores lugares para se ler? Privada, privação, privativa. Lá onde a gente não pode se esquecer do que a gente é, a leitura rende... Ou não? Ou é a Biblia Hebraica Stuttgartensia tão sagrada que não podemos levá-la ao banheiro?

História, ah! História

O Leonel, dialogando com minha provocação, destacou um elemento da prisão moderna da exegese. É a tal da História (com H maiúsculo). Criou-se uma confusão, e a gente fez/faz parte dessa confusão, entre a historicalidade do texto (o fato dele, como qualquer outro fruto da ação humana, estar situado no tempo e no espaço) e a metodologia histórica. De fato, como Leonel tem razão, a diferença entre exegese histórico-crítica e histórico-gramatical é apenas cosmética - as duas concordam naquilo que é decisivo: a prova da veracidade do texto bíblico é dada pela comprovação 'cientificamente' Histórica da relação "fidedigna" entre o narrado no texto e o acontecido no tempo e no espaço. Por isso eu considero que o paradigma histórico deva ser superado - não porque ele só produziu erros e más leituras, pelo contrário, aprendemos e continuaremos aprendendo coisas interesantes com leituras históricas. Ele deve ser superado porque há outras metodologias mais apropriadas para ler textos do que a histórica, cuja finalidade não é "entender" o texto, mas "reconstruir" a história. É claro, isto não quer dizer que devamos parar de fazer história - muito pelo contrário. E no caso dos povos bíblicos, ainda precisamos de muita pesquisa histórica!
Textos são tecidos-signos culturais, linguageiros. Precisam de abordagens linguageiras, culturais-sígnicas. Hoje em dia temos algumas abordagens muito interessantes para lidar com textos - literárias, lingïísticas, semióticas, discursivas, hermenêuticas, etc. Ficamos com a historicalidade dos textos-humanos, mas não precisamos ficar também com a "historicidade" na hora de ler-exegetar (a não ser que a leitura seja feita para reinventar a História...).

Você lê "de noite na cama"?

Para que lemos textos? Por que nos vemos "enfermos de literatura"? E, em especial, enfermos da literatura bíblica? Por que deciframos o cosmo como uma espécie de texto? Lemos imagens, expressões faciais, sinais dos tempos, nuvens, corpos e letras. Nossa mediação com o mundo é dada semioticamente. Só conhecemos a primeira realidade (a biológica) por meio de uma segunda realidade que a constrói o tempo todo, humanizando-a (como coisas que amamos, tememos, como lar ou exílio, etc). Nossos gestos e posturas corporais diante dos textos são formas de início de deciframento. Se eu leio um texto em pé, em público, com voz impostada, pausada, já dou início a um longo e complexo processo interpretativo. Este texto se transformará em imagens em minha cabeça, em sequência de imagens, delas escolherei as que afetivamente me dão prazer ou dor (preterindo e eliminando outras), as associarei a outras tantas até as primeiras se perderem. De um texto com o qual meu corpo iniciou a leitura eu produzirei textos para outros e assim ao infinito. Portanto, congelar a interpretação na perícope, no seu contexto original, na etimologia da linguagem original, nos cânones formais de gênero, no sentido histórico e depois dizer "uma vez achado o texto correto, no tempo correto, com os métodos corretos, vamos à hermenêutica..." é um divertido contrasenso, uma vez que o leitor (exegeta) já iniciou sua leitura na escolha do texto (que em algum momento, em sua biografia de adolescente o fascinou, que o fez ficar trancado em casa lendo, ao invés de correr atrás de uma bola ou de garotas...), com o seminário onde se matriculou, depois com a disposição dos livros em sua biblioteca (faça o exercício, mapeie sua biblioteca por regiões: o que está acima - abaixo, na direita - na esquerda), nos que escolheu pra ler, nas frases que sublinhou, na forma como começou sua aula, nos devaneios que se permitiu (ou não) durante a mesma. Ou seja, você está lendo o texto da mesma forma que está lendo o mundo ao seu redor o tempo todo. Por que este texto? Aí saio em defesa do exegeta: por que na sua polissemia ele me permite construir meu mundo, humanizá-lo. Poderia ser outro texto? Poderia sim. Mas sempre um texto, que me penetra os sentidos para que eu faça o melhor dele, para que eu me enrosque na sua teia de palavras e ele me salve da falta de sentido humano do mundo. E se quero dele me libertar pra ler outros textos, deito-me no divã e lá vem a rede de palavras de novo. E o texto vira outro texto. Estamos nos envolvendo narcisicamente em tecidos o tempo todo.
Assim, caro blogueiro, caro leitor, se você lê a Escritura "de noite na cama" você já está fazendo uma exegese de confessionário, de ursinho de pelúcia, de "boa noite, eu te amo, benzinho", de "quero um salmo bonito pra me consolar" ou "um milagre com o qual sonhar". Pode ser tudo isso ou mais. Mas no fundo, não é muito diferente da leitura do engravatado que entra num prédio vetusto, diz bom dia aos seus alunos, põe um Novum Testamentum Graece sobre a mesa, faz chamada e diz: "nossa perícope de hoje é um apoftegma da Fonte Q". Ele já está lendo há muito tempo, com seu corpo, seus gestos e com os locais e tons com que o faz.  E a fantasia da sua leitura é: "ninguém sabe que já leio escondido faz tempo, nem eu mesmo".

Exegese, história, leitura. Rápidas observações

Bem, o Júlio "provocou", no bom sentido. Então, sinto-me motivado a contribuir com a discussão sobre exegese.

Inicialmente, acho que há um questionamento, que não vem de hoje, a respeito da clássica divisão entre exegese e hermenêutica. Segundo os modelos clássicos, a exegese se preocuparia com "aquilo que o texto diz ou quis dizer", enquanto que a hermenêutica se ocuparia "com o que significa o texto, e como ele se aplica hoje". Alguns métodos de caráter mais populista fazem a seguinte divisão na interpretação de um texto bíblico: o que o texto "diz"; o que o texto "quer dizer"; como o texto se "aplica" hoje.

Como alguém que trabalha com literatura, principalmente a bíblica, digo que não é possível manter essa distinção. Ao "dizer", os textos bíblicos "já querem dizer". Ou seja, há neles um processo retórico indissolúvel pelo qual os textos já indicam, em si mesmos, os meios pelos quais eles querem ser entendidos.

Ao dizer isso, entro no segundo aspecto de minha mensagem: a questão histórica. Hermeneuticamente falando, vivemos sob a tirania da História a um século ou mais. Tanto na interpretação de cunho conservador, fundamentalista, como na crítica. De acordo com o primeiro modelo interpretativo, a Bíblia testemunha o que realmente aconteceu, visto como um fato literalmente descrito. Se a Bíblia não for concebida dessa maneira, ela não pode ser a Palavra de Deus, dizem. No segundo modelo, o crítico, a premissa básica é a suspeita de que a Bíblia apresente os fatos tais como aconteceram. Então, mediante instrumental crítico-histórico, procura-se negar, corrigir, reescrever os textos bíblicos para que eles se adaptem à "visão de história" daquele que faz a crítica bíblica.

Nos dois casos a Bíblia torna-se cúmplice de processos e análises históricas. E isso não é bom. Há muitas incertezas históricas, sejam elas metodológicas ou mesmo de confirmação ou não. Os arqueólogos, especialistas chamados para testemunhar tais questões, hora dirão: "A Bíblia tinha razão", hora: "A Bíblia não tinha razão".

É claro que a abordagem histórica é importante. Ela nos ajuda a entender contextos, a situar fatos etc. Mas como ferramenta auxiliar. Não como premissa básica de trabalho. Até por que as teorias e abordagens estão em mutação.

Por isso, convém que tratemos a Bíblia como um conjunto de textos que surgem em circunstâncias históricas, contam histórias ambientadas em determinados momentos, mas cujos autores não se submetem servilmente à história, mas escolhem caminhos literários, retóricos, dialogais, intertextuais, etc para se comunicarem com seus leitores originais e com os todos os demais leitores e, principalmente, para que seus textos ultrapassem as barreiras do momento histórico em que formam produzidos.

Passo para o último ponto. A leitura. A exegese atual é ingênua! Parece estranho, mas é. Qualquer que seja ela. Pelo menos aquela que a maioria de nós conhece e é praticada em seminários teológicos em nosso país e que provém de países protestantes do ocidente. Trabalhamos pequenas porções textuais, analisamos palavras buscando seu sentido etmológico, vemos (quando vemos!) as estruturas sintáticas das frases hebraicas e gregas, propomos autoria, datação e contexto histórico, tudo isso como se os escritores dos livros bíblicos vivessem como vivemos hoje no século XXI.

Mas eles não faziam isso. Em primeiro lugar, os textos bíblicos eram lidos por poucos, visto que o índice de analfabetismo era grande naqueles períodos. Além disso, a leitura era algo extremamente difícil, para técnicos, visto que as palavras eram unidas, sem acentuação e a leitura se tornava, em si, um processo interpretativo. Mais ainda. Não havia capítulos (exceção ao livro de Salmos) e nem versículos. Os textos eram escritos em rolos, com toda a dificuldade de manuseio inerente a eles. E, por fim, os textos eram "ouvidos" mais do que lidos. Uma pessoa lia, e as demais, em assembléia, ouviam. Por isso tudo, volto a dizer, nossa exegese é ingênua quando desconsidera os meios de produção dos textos bíblicos, as estratégias orais utilizadas, e cria uma forma totalmente estranha de ler e trabalhar com esses textos.

Eu precisaria falar agora de uma teorização do texto. O que, afinal de contas, é um texto? Isso é fundamental. Mas deixo para depois.

Que é exegese?

Um dos objetivos deste blog é a discussão sobre a exegese enquanto tal, especialmente enquanto praticada na academia e aceita ou rejeitada nas igrejas. Nós não acreditamos que a definição e a prática modernas da exegese, que se tornaram canônicas na academia, ainda mantenham validade e legitimidade. Por isso, queremos propor e discutir novas possibilidades de compreensão da leitura/interpretação/exegese bíblica.

Aí vai um palpite-palpitação: Exegese é busca comprometida visando a análise, apreciação e conspiração com as possibilidades de sentido da convivência no mundo propostas pelo texto para nossa resposta transposta em novos textos e modos de viver.

(1) Mantenho o termo exegese para poder criticá-lo. Não seria muito mais viável simplesmente chamar o que fazemos com a Bíblia de "leitura"? Pelo menos não criaríamos a ilusão da necessidade do especialista em línguas originais, história antiga e metodologias vetustas;
(2) Poderia ter dito "tarefa" da exegese, mas aí ficaria no velho paradigma da leitura enquanto atividade acadêmica profissional especializada. Preferi "busca comprometida", pois ler é buscar algo que ainda não sabemos bem o que é, e buscar uma promessa, comum, uma cumplicidade entre texto e leitor que desejam transcender-se a si mesmos;
(3) análise, apreciação e conspiração: dimensões da leitura - procedimental (conjunto de fazeres que conjura uma astúcia; analisar é necessário, posto que o texto tem sua própria materialidade, sua própria manha, e não pode ser violentado por quem o lê); estética (apreciar é ser impactado existencialmente por uma obra de arte, é mergulhar na inspirada arte textual em uma procura por significação, sentido, auto-expressão...); ética (ou "espiritual", pois na leitura respiram - inspirar-expirar - transpiram, conjuntamente, leitores e textos, habitantes de um mesmo mundo espiritual: vento e-vento);
(4) possibilidades de sentido da convivência no mundo - talvez se devesse incluir "multiformes" - para dar espaço aos modos rabínicos e medievais de leitura, que pensavam o sentido em diferentes níveis, geralmente quatro - possibilidades porque todo texto é polissêmico e aberto, e a leitura não deveria enclausurar e "monotonar" essa abertura polissêmica, e o sentido (sentimento, significado, orientação, corporeidade - por causa dessa polifonia preferi este termo a "significação", mais à vontade na semiótica, que é a ação de sinalizar, apontar para - e que está na base, no processo que gera sentidos) é, não o do texto em si, mas daquilo a que o texto dá testemunho, a "convivência no mundo" - nossa vida em comum com tudo o mais que existe em nossa casa planetária-cósmica (altas transcendências, talvez em demasia?);
(5) com o perdão da brincadeira semântica - proposta, resposta, transposta - todo texto é um post, uma postagem (não só na mídia "blog", mas também na velha mídia "correio"; enfim, texto é mensagem, um levar daqui para lá, de alguém para outrem), uma tomada de posição (postura) "prévia" e "perante", que pede uma resposta mediante transposições e transpostagens das possibilidades significacionais de um texto para outros - textos e vivências, convivências...

quinta-feira, 15 de abril de 2010

In-fidelidade: uma característica de nosso tempo

A ênfase no tema da fidelidade em Gn 22 pode ser interpretada de modo alienante e privatizante. Como prevenção contra tal tipo de recepção do tema, trago à reflexão alguns pensamentos sobre o caráter subversivo da fidelidade no mundo contemporâneo marcado pela infidelidade.
“Pois atualmente o próprio conceito de fidelidade passou a ser arcaico e ridículo. [...] Não somos fiéis, somos parceiros de jogo. [...] Seria sumamente ridículo se quiséssemos manter a fidelidade ao aparelho no qual estamos funcionando. A fidelidade é relação pessoal, os aparelhos não são pessoas. Nada é pessoa, com efeito: nem o parceiro de bridge, nem o do casamento. Tudo é aparelho, caixa preta. [...] Somos incapazes da vivência, e até da concepção, da fidelidade. O que implica que somos incapazes da liberdade no significado existencial desse termo.” (Vilém Flusser. Pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 157, grifos dele)
“A pequena minoria que sofre a consciência do absurdo do jogo social inventou substituto da fidelidade, chamado ‘engajamento’, que possa proporcionar sensação da liberdade. [...] Tal qual a fidelidade, o engajamento assume responsabilidade. Sacrifica a disponibilidade, a mobilidade social, em prol de específico relacionamento. Mas há profunda diferença entre fidelidade e engajamento. O engajamento se fundamenta sobre decisão deliberada, a fidelidade sobre espontaneidade. Ninguém se decide ser fiel: a fidelidade é mantida. Para dizê-lo em termos arcaicos, convenientes ao assunto: engajamento é fidelidade sem amor.” (Vilém Flusser. Pós-história. São Paulo: Duas Cidades, 1983, p. 157, grifos dele)
Dois exemplos dessa incapacidade contemporânea de pensar e de viver a fidelidade: (a) fidelizar e fidelidade se tornaram termos do comércio e serviços – como os consumidores podem escolher entre diversos fornecedores dos mesmos produtos e serviços, as empresas oferecem vantagens para quem for fiel – assim, a fidelidade é despersonalizada e mercantilizada; (b) fiel era outro nome para o membro de igreja – pois havia a expectativa de permanência da pessoa em uma igreja local ao longo de sua vida, salvo motivo de força maior – hoje em dia, as igrejas possuem clientes, freqüentadores, consumidores “desfidelizados”.
Algumas das principais conseqüências dessa incapacidade de viver em fidelidade são: (a) a despersonalização das relações interpessoais, que bloqueia a possibilidade de reconhecimento nas suas três esferas: pessoal, jurídico-política e sócio-identitária; (b) a despolitização da vida em sociedade, que reduz a democracia a uma questão de consumo e o compromisso político a uma questão de preferências privadas; (c) a subversão da liberdade, que não é mais o poder- viver para o bem do próximo (assim já em Kant e Hegel, no mundo moderno), mas o poder-consumir para a auto-satisfação; (d) a mercantilização das crenças e práticas religiosas, que reduz a fé ao consumo de bens e sensações religiosas e reduz Deus ao “gênio” da lâmpada maravilhosa.