sexta-feira, 23 de abril de 2010

Método, que m. (método) é esse?

Estive ausente nos últimos dias por conta de burocracias. Mas volto agora ao que interessa que é o debate sobre a Bíblia e sua interpretação. Os textos de Leonel e de Júlio estão desenvolvendo o tema dos limites da leitura: por um lado tenho um texto com suas exigências históricas, ou outro lado um leitor que é um ser igualmente histórico, na sua história. O passado do texto se perdeu, ou melhor, foi encontrado, mas no texto. O passado só exige por meio de indícios, vestígios e todos eles, pedra, madeira ou texto precisam ser lidos. No caso dos textos criativos e míticos (entre eles a Bíblia) as dificuldades são maiores, pois seu potencial de reserva de sentido é enorme, se não infinita. Mas eu me referia à historicidade do texto. Como bem lembra Fiorin em sua introdução à obra de Bakhtin, a historicidade não é composta por "curiosidades" (fatos históricos, modos de produção, conflitos, etc), mas pela configuração histórica do próprio texto. Ele é um enunciado, um texto posicionado no universo social onde foi proferido, lido. A historicidade está nos ossos, nas letras, jamais fora do texto. Esta é uma tarefa interessante, ainda que soe contraditória: explorar a historicidade na imanência do texto, na forma como ele se posiciona no mundo.

Depois da historicidade do texto (ou concomitante a ela, na perspectiva da percepção), vem a historicidade do leitor. Sem alguém que o lê o texto está morto, silencioso. Mas quem lê (do mais crédulo exegeta histórico-crítico ao mais cético pós-moderno) faz o texto emergir novamente. Qual das duas historicidades é mais importante? Creio que a pergunta é falsa. Devemos, ao contrário, admitir que uma não se faz sem a outra. Ou sequer existe sem a outra. Texto não lido não tem história.

Concordo com o Júlio quando diz que a Bíblia tem mais que ver com a arte. Mas aí entra uma questão importante: se a Bíblia é inspiração, norma, regra ou o que mais for para as pessoas, quem e como pode interpretar? Na verdade pra mim a Bíblia não é regra de coisa alguma. Seus projetos não são os meus. Nela busco testemunho para construir o meu próprio, mas não tenho nenhuma intenção de imitar a religião dos primeiros israelitas, primeiros judaitas, primeiros cristãos. Minhas angústias, medos e desejos são outros e é com eles que debato e contra eles que coloco textos (não só a Bíblia!) em tensão. Mas isso não resolve a questão. Na sociedade as pessoas sim orientam-se de alguma forma pela Escritura. Não posso lavar minhas mãos e dizer: que se danem, que sigam, em nome da Bíblia, discriminando gays, muçulmanos e umbandistas. O leitor da Bíblia também precisa se posicionar sobre a Bíblia na sociedade. E isso que implica em dizer que há leituras diabólicas, equivocadas, incompetentes. Dizer que tudo vale é dizer que o fundamentalismo pode valer. E aí? Fico feliz no meu quarto com música new age, incenso e Bíblia? Acho que neste momento o chato do método, do método que se discute nas universidades, nos seminários, nos livros é importante. As regras do jogo tem que ser longamente discutidas, caso contrário chega alguém de mitra e diz: eu leio melhor que os demais, quero impor minha leitura... Ela é apenas uma leitura e os métodos têm que dizer isso. Queria ter sido mais poético aqui...

De volta a Intentio Auctoris

Kenner e Esdras reagiram à reação que fiz a um comentário sobre aquele post. Agora respondo aos seus comentário:
(1) Esdras, você tem razão quanto a Foucault. A Ordem do Discurso não é um manual de hermenêutica, mas uma explicação de como o discurso pode ser controlado, delimitado, falseado e anulado. Em seu comentário você pergunta se "isto não nos coloca num relativismo interpretativo"? O relativismo na interpretação de textos não depende desta ou daquela metodologia dentre as que estamos discutindo. Depende, sim, da visão filosófica mais ampla de quem lê. É possível ser "historicista" e relativista (embora não seja comum!). No caso das exegeses semióticas e literárias, por exemplo, o relativismo é exorcizado de pelo menos duas maneiras: (a) o texto não pode significar qualquer coisa! sua materialidade lingüística deve direcionar o processo de leitura, embora não garanta uma única e definita interpretação; (b) recusando-se a aceitar o conceito da verdade como "correspondência com a coisa", mas pensando na verdade como coerência inter-subjetiva, não há mais necessidade nem lugar para relativismo.

(2) Kenner, para que novas formas de leitura se tornem hegemônicas é necessário que mais escolas as pratiquem e que, fora das escolas se for o caso, mais gente as utilize. É necessário que se publiquem livros, artigos, se editem revistas especializadas nessas novas formas, se organizem grupos de estudiosos, associações de biblistas "inovadores", etc. É um longo e imprevisível processo. Mas já começou!

Leitura da Bíblia: ciência ou arte?

Uma das discussões constantes na leitura da Bíblia na Modernidade é a relativa ao estatuto da interpretação (de fato, é uma discussão sobre o estatuto da própria Teologia como uma ampla área de saber). Nas vertentes historicistas (metodologias históricas, sociológicas, antropológicas, etc., ou seja, baseadas nas ciências humanas, das quais a História foi, em boa parte do mundo moderno, o paradigma), normalmente se pensa na exegese como uma atividade científica, logo, objetiva. Ora, a idéia moderna de ciência é, basicamente, a de executar procedimentos em forma metódica e controlada, a fim de construir leis explicativas e preditivas dos objetos (fenômenos) estudados. A verdade científica estaria, assim, garantida pela objetividade do objeto e pela impessoalidade do procedimento calculatório. Em linguagem técnica: Se p, então q = se eu sigo os procedimentos corretos de forma correta então eu descubro a verdade oculta no objeto sob estudo.

Temos nesta equação um grave problema no que tange à leitura da Bíblia (ou de outros textos similares). Não se lê a Bíblia com vistas a formular leis explicativas e preditivas, mas para se compreender a Bíblia a fim de ser fiel a um dos projetos de vida que nela se nos apresentam misteriosamente (uso o termo em sentido similar ao das cartas (pós?)paulinas aos efésios e colossenses - um mistério já revelado mas ainda oculto). Ou será que podemos formular leis "espirituais" (alguém já fez isso no passado, ou você nunca leu as "Quatro Leis Espirituais", ou, recuando ainda mais no tempo, você não ouviu falar da "Lei"?) que, em todo e qualquer lugar, a qualquer tempo, para qualquer pessoa, funcionem sempre da mesma maneira, inexoravelmente?

Quando a exegese segue os procedimentos cientificos da História, ela submete o texto bíblico a um procedimento explicativo, não compreensivo; ela transforma o texto em "fonte", em "documento", em "evidência" (embora o melhor fosse dizer "indício"). Nesse exato momento ela destrói o texto (ou "desconstrói", mas aí estaríamos sendo injustos com a desconstrução de Derrida, que é totalmente diferente). Nos velhos tempos do historicismo positivista na exegese (para alguns estudiosos não são velhos, mas ainda atuais; embora a maior parte dos exegetas históricos atuais já tenha abandonado o positivismo), um versículo do Pentateuco facilmente se tornaria em "evidência" de duas, três ou até mais fontes - o que gerou um famoso provérbio inglês que faz o mesmo efeito em português: "O Pentateuco é mosaico, ou um mosaico?"

Ora, se queremos reescrever a história científica de Israel (uma atividade legítima), usando a Bíblia como fonte (uso também legítimo), teremos de desconsiderar a história pragmática das Escrituras (uso o termo seguindo Jörn Rüsen, um teórico da historiografia com algumas obras publicadas pela Editora da UnB), posto que essa história pragmática não é científica. Entretanto, se queremos compreender a Escritura, não teremos de desconsiderar a sua narrativa pragmática, mas de construir, a partir dela, nossas próprias narrativas fiéis a um dos projetos de vida de que se dá testemunho na Bíblia. Então, mesmo estando calvinista, evangelical radical, etc. e tal, sou discípulo do Messias Jesus, assim como não-calvinistas, não-evangelicais radicais, não-etcéteras e tais ...

Ler a Bíblia é, para mim, porém, uma arte. Como arte, ela precisa também de procedimentos rigorosos, disciplinados. Mas não será arte se se tornar impessoal! Ler a Bíblia é uma arte e, como disse o Gil, "a arte é irmã da ciência, ambas filhas de um deus fugaz, que faz num momento e no mesmo momento desfaz".

Intentio Auctoris ...

Esdras trouxe, mais uma vez à discussão, a questão da validade da interpretação, em comentário feito ao post do Leonel. Cito parte do comentário do Esdras:

"O texto trabalha sobre dois eixos: o da interpretação adequada e a resposta do leitor. No primeiro, embora os administradores do blog reconheçam que “há um sentido no texto”, a importância e valor da exegese histórico-gramatical e léxico-sintática são relegados, ao que parece, a questões de somenos importância pelo fato de o leitor, seu contexto e competência serem mais importantes do que o contexto, a linguagem, gramática, ou propósitos do autor. Como está claro no ensaio “o que existe é um texto que não tem ancoragem histórica em um autor e um leitor que não consegue ocupar o lugar dos leitores originais”. Todavia, minha pergunta é: Como justificar uma interpretação que, ao mesmo tempo em que faz jus ao contexto original, fale ao leitor moderno afastado do autor e de sua cultura, sem que, para isso, o texto seja desconstruído de seu propósito fundante?" (os itálicos são meus - JPTZ)

Começo com a questão envolvida na frase "ao que parece". De fato, apenas "parece" que se dedique pouco valor à materialidade lingüística do texto. Na exegese literária e na semiótica o texto recebe, inclusive, muito mais atenção do que nas metodologias históricas. Em meu Manual de Exegese, por exemplo, o trabalho do leitor com o texto em sua materialidade é tão intenso que corresponde a aproximadamente cinco vezes mais trabalho comparado com o da "releitura" do texto, ou sua aplicabilidade ao leitor atual. De forma semelhante, não há menos atenção ao contexto histórico-cultural do texto bíblico. Há, sim, uma diferente teoria da história com uma, conseqüentemente, diferente forma de trabalhar o contexto. No caso da semiótica, o mecanismo das relações intertextuais e interdiscursivas é que oferece o aparato técnico para a análise do contexto da época de escrita do texto (isto eu já apontara em outros posts, ao mencionar, por exemplo, o conceito de "heterogeneidade constitutiva do discurso", que provém da Análise do Discurso, e se refere também à contextualidade do texto).

Então, a contextualidade e a materialidade lingüística do texto não são desconsideradas, não são subordinadas ao leitor, nem são questões de "somenos importância". O que Leonel e eu estamos tentando mostrar é outra coisa.

Que coisa é essa? É a impossibilidade de, a partir do texto, se chegar à intenção do autor e, chegando-se a essa intenção, descobrir o "que ele realmente queria dizer". É, ademais, a inutilidade dessa busca, na medida em que, se trabalhamos intensamente com o texto, nele encontramos tudo o que é necessário para sua compreensão, sem precisar remeter a uma realidade "externa" ao texto - seja a intenção do autor, seja um acontecimento histórico. (O mesmo vale para o leitor original.) Então, caro Esdras, não é preciso "desconstruir" o texto para entendê-lo. Ora, a metodologia que "desconstrói" o texto para entendê-lo é exatamente a metodologia que se baseia na "intenção autoral", que se sobrepõe ao texto e o "corrige", posto que afirma algo além do texto para revelar sua significação e é a mesma metodologai que separa a exegese da hermenêutica.

Ao meu ver, a questão aqui é bem diferente. São dois jogos distintos que se entrecruzam. Um é o jogo da compreensão. No jogo da compreensão são indispensáveis a materialidade lingüística do texto e a sua contextualidade inter-discursiva (que substituem com imensas vantagens teóricas e metodológicas, o "autor" e os "leitores originais" - os quais são, assim, plenamente levados em conta, mas não como "pessoas físicas" e sim como "agentes discursivos ou comunicativos").

O segundo jogo é o jogo da autoridade (ou da Verdade). É o jogo que responde à pergunta "com que autoridade eu deixo de fazer isto e passo a fazer aquilo?". Este segundo jogo é tão legítimo quanto o primeiro. E todos o jogamos, mas com regras e objetivos diferentes. Apenas um exemplo, extraído da leitura pentecostal da Bíblia, em homenagem à participação do Esdras e do Kenner como co-blogueirantes: somente no início do século XX passou-se a interpretar textos do livro de Atos como "prova" da doutrina do batismo no Espírito Santo como uma "segunda bênção". Bem, não podemos vincular essa interpretação à intenção do autor de Atos, nem à recepção do texto pelos "primeiros leitores", nem mesmo à sua recepção por dezenas de gerações de leitores da Bíblia. Isto prova que a interpretação pentecostal está "errada" e é heterodoxa? De modo nenhum. Mostra, pelo contrário, que o enunciatário (leitor) co-produz sentido com o enunciador (autor).

Onde está a Autoridade ou a Verdade? O jogo da Autoridade/Verdade está sendo jogado no conflito das interpretações. Tanto pentecostais quanto não-pentecostais utilizarão o argumento da "intenção do autor", ou do "contexto textual" ou "dos primeiros leitores" para provar que a sua própria interpretação tem Autoridade por que ela é a que está mais próxima da Verdade originante (ou "propósito fundante" no comentário do Esdras). O jogo da Verdade é o jogo da Recepção Institucional do texto, que passa a servir de fundamento para uma doutrina ou conceito teológico que tenha valor normativo para um determinado grupo religioso. Nós, nas Igrejas Cristãs, ainda não aprendemos a falar de modo humano, não-fundamentalista, quando anunciamos a verdade aos demais membros de nossa denominação. Hoje eu não tenho mais essa dificuldade. Quando prego sobre "construção do templo" não preciso dizer ao pessoal da comunidade que eles têm de dar dinheiro por que é a vontade de Deus que a igreja tenha Templo. Simplesmente digo, que nós é quem precisamos do templo para nos reunirmos e por isso nós é que temos de pagar para construí-lo. (Não seria esta a "intenção" de Jesus ao afirmar que iria "destruir o Templo e reconstruí-lo em três dias"?)

Volto ao primeiro jogo. Em nossos posts, Paulo, Leonel e eu temos jogado o jogo da compreensão de textos. Não estamos jogando o jogo da autoridade/verdade. Eventualmente jogaremos também esse jogo. Por enquanto, sugiro dois textos para quem tem interesse nas regras do jogo da autoridade (que, repito, é tão legítimo quanto o jogo da compreensão): Michel Foucault, A Ordem do Discurso, livreto publicado pela Loyola e que você pode achar "de grátis" na web. Dominique Maingueneau, Discurso Literário, publicado pela Contexto, em especial o capítulo sobre "Discurso Constituinte".

Para encerrar (ufa!) este post, não a discussão. Na exegese clássica moderna deu-se a este jogo o nome de "Hermenêutica", que vem depois da "Exegese". O jogo da exegese é o jogo do "original", o jogo da hermenêutica é o da aplicação, da releitura. Aí, se perdeu de vista, ou se escondeu, o jogo da autoridade. Para metodologias semióticas, literárias, ou lingüísticas, ou estéticas, o jogo da exegese e o da hermenêutica são um só. Por isso é que fica a impressão de que se descuida do autor, contexto, leitores originais. Não! Apenas se descreve a arte da interpretação de forma diferente. Mas este "apenas" faz uma imensa diferença política!

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Olhando para o leitor - 3

Concordo plenamente com o que o Júlio disse.

Na verdade, ele traz equilíbrio ao meu texto - que pode ter um aspecto negativista na trativa do leitor - por iluminar uma questão positiva relacionada ao leitor.

Penso que é necessário trazer a exegese para um plano mais concreto. Vejo muitos exegetas afirmando o senso pleno dos textos, como se sua interpretação fosse a correta e a última... diante de uma multidão de comentários que buscam, igualmente, estabelecer o sentido dos textos.

Sei que a partir do que temos dito pode parecer que nos lançamos a um subjetivismo totalizante na interpretação. Não é essa nossa intenção. Queremos, isso sim, salientar que a leitura/interpretação é um processo onde vários elementos participam.

E nisso o Júlio nos lembrou de algo muito importante para a hermenêutica. Se eu não posso entender que novas leituras, em contextos novos, a partir de novos leitores trazem novos sentidos, como entender, então, que hoje possamos falar em direitos humanos, em ecologia, em preservação do planeta etc, etc, etc? Esses são temas presentes nas Escrituras? Não! Pelo menos não em uma leitura historicista. Mas hoje, a partir das nossas leituras e vivências, conseguimos descobrir portas, frestas, fendas nos textos bíblicos que permitem a elaboração de tais temas.

Olhando para o leitor - 2

Bem, concordo com a descrição que Leonel faz das limitações do leitor e suas implicações para a questão da leitura válida. Também concordo com a afirmação de que há sentido nos textos e que esse sentido fica indiciado (uso o termo indício a partir de Carlo Giznburg com seu paradigma indiciário, no livro Mitos, Emblemas e Sinais)no texto através das várias marcas da textualidade/discursividade. Quero apenas colocar uma pimentinha no molho.

O leitor é realmente limitado em relação ao autor e leitores originais e, por isso, precisa ampliar seu conhecimento enciclopédico (Eco), mesmo sabendo que jamais chegará ao mesmo conhecimento de autor-leitores originais. Porém, todavia, por outro lado, o leitor possui uma vantagem em relação a autor-leitores originais - ele tem um conhecimento enciclopédico mais amplo, já incluídas as muitas leituras que foram feitas do texto a ser interpretado.

Em certo sentido, portanto, quem lê pode até compreender melhor um texto do que seu autor ou leitores originais!

Leituras válidas - olhando para o leitor

Gostaria de palpitar nessa discussão sobre interpretações válidas e inválidas.

No livro "Interpretação e superinterpretação" (Ed. Martins Fontes) Umberto Eco alerta para interpretações descompromissadas com o sentido proposto pelo texto. São as abordagens interesseiras, que utilizam textos para fins desvinculados hermenêutica e moralmente de seus sentidos.

Parece-me que a discussão não vai por esse caminho. A real questão é: como posso saber qual a interpretação adequada? Bem, como o Júlio argumentou, tal questão está ligada diretamente às proposições da exegese historicista, que em sua vertente mais radical em termos conservadores procura o chamado "senso pleno", isto é, aquilo que o autor desejou dizer, o que estava em sua mente.

De minha parte, olhando de uma perspectiva teórico-literária, o problema não é que um texto possua um sentido e queira interagir a partir dele. De fato, há um sentido no texto. Ele se manifesta por intermédio de estratégias textuais, efeitos retóricos, jogos propostos pelo texto ao leitor, e todos podem ser identificados. Reconhecê-los e, como isso, atingir o sentido do texto é o objetivo de todo intérprete.

A dificuldade, para mim, está em outra direção. Ela se encontra no leitor, em suas limitações, que são enfatizadas pela exegese/hermenêutica convencionais ao afirmarem que o intérprete precisa se capacitar de dados históricos para, então, atingir o sentido do texto. Isso é verdade. É aquilo que já mencionei em outra mensagem, e que Umberto Eco chama de "enciclopédia do leitor". Os dados de conhecimento dos leitores originais eram diferentes daqueles que possuímos. Portanto, certos aspectos do texto seriam entendidos por eles sem maiores explicações. Nós, entretanto, precisamos adquirir essas informações preliminares para evoluirmos na interpretação.

Mas esse é um detalhe, talvez o menos importante (mesmo que não saibamos historicamente quem eram os fariseus, ao lermos o evangelho de Mateus sabemos, pelas construções textuais, que eles eram inimigos de Jesus e pessoas em quem não se pode confiar).

A real limitação do leitor, e temos que aceitar isso, se encontra no fato de que ele nunca conseguirá reconstruir o sentido original do texto, visto que o texto deixa de ser um mediador entre autor original e leitores originais. Essa relação não existe mais. O que existe é um texto que não tem ancoragem histórica em um autor e um leitor que não consegue ocupar o lugar dos leitores originais.

O que ocorre é um encontro daquilo que Paul Ricoeur chama de "mundo do texto" e "mundo do leitor". O texto, com suas estratégias, entra em contato com um leitor que possui visão de mundo, valores, pressupostos etc. O encontro real não se dá "dentro do texto" (como proporiam os hermeneutas histórico-gramaticais ou histórico-críticos), mas, a partir de sua leitura e interação com os valores do leitor, na proposição de um mundo novo gerado pela leitura que desafia, incomoda, consola, orienta/desorienta o leitor. Segundo Ricoeur esse é um momento, uma decisão "ética" que todo leitor deve tomar. A real interpretação se encontra aqui.

Parece-me que é exatamente esse momento que definirá se a leitura/interpretação é válida ou não. Qual o resultado dela? Como ela será usada? Temos consciência de nossas limitações interpretativas?

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Leituras válidas - que critério?

Esta é uma breve postagem a propósito da questão levantada por Kenner em um comentário ao meu último post. A questão é uma das fundamentais no processo de leitura da Bíblia - que critério(s) podemos utilizar para distinguir leituras válidas de leituras inválidas de um texto bíblico? O exemplo dado na pergunta é o da proibição a mulheres cortar o cabelo, com base em I Co 11. E o critério que Kenner propõe é o do "sentido original" do texto, ou da falta de historicidade da interpretação específica, e vincula esse critério ao método histórico-crítico. O problema é o da validade das "fusões de horizontes"...
Kenner tem razão por um lado. A partir do momento em que se aceita que a leitura é uma co-enunciação, a questão da validade de leituras surge. Colocando a resposta bem simples e direta: várias leituras são possíveis mas nem todas são legítimas. A questão, porém, permanece: como escolher entre leituras legítimas e ilegítimas?
Sim, as exegeses históricas definiram como critério o "sentido original" ou a "intenção" do autor. Isto não é de todo errado, mas não resolve o problema, pois como sabemos qual é o "sentido original"? E mesmo que saibamos, por que deveríamos ficar presos ao sentido original do texto na aplicação prática? Por exemplo: o "sentido original" da afirmação paulina de uma hierarquia na qual a mulher está sob o homem (I Co 11,2ss) não é exatamente esse que a mulher é inferior ao homem na ordem da criação e da salvação? E qual é o "sentido original" de I Co 14,33-36, a não ser que as mulheres devem ficar caladas na igreja? Um exemplo menos polêmico: nós cristãos paramos de oferecer sacrifícios de animais em busca do perdão de pecados. Mas não é a "intenção" do autor de Levítico e o sentido "original" do texto que devemos efetuar tais sacrifícios? Paramos de fazê-lo por que, com Hebreus, afirmamos que o sacrifício do Messias é o fim de todo sacrifício e que o sistema sacrificial vétero-testamentário é sombra da salvação. Não propôs o autor de Hebreus que oa "intenção" do autor divino não combinou com a intenção do autor humano?
É melhor abandonar o "sentido original" ou a "intenção do autor" como critérios, pois além dos problemas relacioandos à descoberta de ambos, há inúmeros problemas relativos à aplicação ética do "sentido original" de textos em contextos distintos e da "intenção do autor" diante da intenção divina, ou da intenção do leitor, etc.

Voltemos ao critério possível. A historicalidade do texto é um deles, talvez o melhor deles. Mas não no sentido de uma "originalidade" e sim no sentido de uma "limitação". Todo texto é limitado pelo seu contexto e precisa ser re-criado em novos contextos. Não seria o limite de I Co 11 e 14 (textos acima usados como exemplo) a própria incapacidade, ou impossibilidade, de Paulo colocar plenamente em vigor a afirmação de que em Cristo não há homem nem mulher?
Para as semióticas e as análises do discurso, a historicalidade de um texto é analisada como efeito de sua interdiscursividade, ou da "heterogeneidade constitutiva do discurso". Ou seja, todo texto é um cruzamento de muitos textos, a montante e a jusante (anteriores e posteriores ao texto). É no arranjo desses cruzamentos, mediante a constituição de uma "teia de discursos" que se diferenciam leitura legítimas de leituras ilegítimas. Não se trata, então, do sentido original ou da intenção do autor de um "texto" (especialmente quando texto é apenas uma perícope). Trata-se, sim, da intencionalidade discursiva, das limitações e possibilidades de um arranjo de textos em discursos e de discursos em teias discursivas dentro de contextos históricos específicos.

Bem, apenas uma possibilidade. Arnaldo Cortina, em seu livro, O príncipe de Maquiavel e seus leitores. Uma investigação sobre o processo de leitura. São Paulo: Editora da UNESP, 2000 (disponível gratuitamente na internet) oferece outros argumentso na linha sêmio-discursiva. Rolf Knierim, formado na exegese histórico-crítica, em seu livro A interpretação do Antigo Testamento. São Bernardo do Campo: Editeo, 1990, também oferece outros argumentos na mesma linha. Umberto Eco, em A Obra Aberta, também debate esta questão. Bibliografia para isto não falta ...

terça-feira, 20 de abril de 2010

Croatto e a eisegese

Esta postagem é motivada por um interessante comentário ao post "beabá" feito por meu amigo Esdras Costas Bentho, um teólogo pentecostal da nova geração de teólogos assembleianos que certamente irá fazer excelentes contribuições ao campo teológico brasileiro. Caro Esdras, obrigado pela sua participação aqui neste blog-triádico-exegético-hermenêutico. Permita-me discordar de sua avaliação inicial do conceito de eisegese em Croatto e indicar porque o faço.
(1) A escolha do termo eisegesepor Croatto é polêmica e dirigida especificamente contra o positivismo historicista da exegese histórico-crítica. Seguindo as propostas de Gadamer e Ricoeur, Croatto entende o processo de interpretação como um processo de permanente co-construção e reconstrução do texto interpretado - e não, como na exegese "positivista", como a descoberta do sentido original aprisionado no texto. O sentido de um texto se dá no diálogo constante entre o texto e seus leitores e leitoras, em distintas e conflitantes "fusões de horizontes".
(2) Croatto procura, a partir daí, revisar a questão da historicidade do texto. A historicidade do texto não se encontra na relação supostametne imediata entre o que se diz e o que aconteceu (de modo que um texto ou conta a verdade factual, ou é historicamente falso). Os textos, segundo Croatto, se vinculam interpretativamente a situações históricas que consideram "fundantes", assim como as leituras dos textos também se vinculam a novas situações "fundantes". Histórico, então, não é uma questão do vínculo entre o narrado e o acontecido, mas uma questão do vínculo entre o evento interpretado e o futuro que ele se propõe a gestar - algo que se dá não só na escrita, mas também nas múltiplas leituras de um texto.

Deveria escrever mais, mas o tempo de um trabalhador assalariado ...

A forma conduz ao sentido!

Bem, eis-me novamente dialogando com as proposições do Júlio!

Achei muito inteligente e refinado o que o Júlio postou, mesmo que de modo resumido. Por tudo quanto se tem dito aqui sobre exegese/hermenêutica, fica evidente a necessidade de uma abordagem multidisciplinar e renovada para a prática interpretativa de textos bíblicos.

Gostaria de contribuir com uma observação suscinta e que é contemplada pela exegese tradicional, mas a partir de outro ângulo.

Todo aluno de teologia aprende a reconhecer os "gêneros ou formas literárias" presentes em textos bíblicos. Desde os macro-gêneros, como evangelho, cartas, apocalipse etc, até os micro: paradigmas/apotegmas (Dibelius/Bultmann), relatos de milagres, parábolas etc.

Tal metodologia procura, a partir dos gêneros, definir a origem oral de tais textos e a vivência da comunidade cristã que os praticou. Por exemplo, um texto de controvérsia teria surgido com o objetivo de fornecer elementos aos cristãos primitivos para discutirem com o judaísmo do período. Nesse sentido, ao lê-lo, eu procuro reconstruir sociologicamente a estrutura de vida desses cristãos.

Mas o que se esquece, e aqui a teoria literária pode nos ajudar, é que um gênero literário pressupõe função e gera expectativa nos leitores. Principalmente nas sociedades antigas, das quais provêm os textos bíblicos, e que possuíam gêneros literários bem definidos. E essa função e expectativa, ao meu ver, não são essencialmente retroativas, ou seja, não olham apenas para trás, mas, principalmente, para a frente. Para todos os leitores que terão acesso ao texto.

O crítico literário Antonio Candido, no livro "Literatura e sociedade", trabalha esse aspecto ao dizer que uma obra sofre influência da sociedade (a exegese tradicional enfatiza esse aspecto) e, ao mesmo tempo, influencia a sociedade. O caminho para detectar essa influência é sua articulação interna. Portanto, não basta, como a exegese sociológica por exemplo propõe, identificar os agentes, os condicionantes sociais etc, para interpretar um texto. É necessário que eu os veja a serviço da organização interna da obra para que, a partir desse ponto, eu compreenda como ela se comunica.

Posto de modo prático, penso no livro de Jonas. Se não compreendermos que as articulações do livro são construídas em forma de paródia, em termos cômicos, dificilmente entenderemos sua mensagem e deixaremos de apreender o tipo de impacto que ela exerceu junto aos leitores e ainda quer exercer. A estrutura estética está a serviço da mensagem. Por exemplo, a decisão de Jonas de fugir de Deus, e a consequência de seu ato, relatados no início do livro, são ilustrados mediante uma estratégia de descrição geográfica. Ao desobedecer à ordem divina, Jonas foge e "desce" a Jope, "embarca" (entra) em um navio (1.3); diante da tempestade, "desce" ao porão e dorme (1.5); ele é "jogado" ao mar (1.15) e, por fim, vai parar no "ventre" do peixe v(1.17), "no profundo, no coração dos mares" (2.3). Em outras palavras, o escritor apresenta de forma pictórica a fuga de Jonas e a consequência de seu desejo de estar longe de Deus - ele afunda cada vez mais!

Finalizando, é necessário que o leitor esteja atento e seja sensível às formas em que um texto se apresenta. Elas indicarão o caminho de sua interpretação.

Um beabá de lingüística e teoria semiótica

O vídeo postado pelo Leonel, bem humoradamente, trata de um tema que Roger Chartier (entre outros) tem discutido tecnicamente em várias de suas obras sobre a história da leitura. Mas não é sobre isso que desejo comentar, e sim sobre algo similar que me veio à mente após assistir ao vídeo.
Na teoria textual usada nas exegeses pré-lingüísticas, não se faz uma distinção crucial para todas as ciências da linguagem no século XX - a distinção entre significante e significado (para usar os termos de Saussure) ou de plano de expressão e plano de conteúdo(para usar os termos de Hjelmslev), que amplia a fórmula simples de Saussure. Plano de expressão é o equivalente à manifestação concreta do significado - pode ser um texto, fala, pintura, vídeo, escultura, desenho, etc. Plano de conteúdo é equivalente ao significado, abstrato, possibilitado pela manifestação. Daí que um mesmo Plano de Conteúdo possa ser manifestado por diferentes Planos de Expressão.
Ambos podem ser subdivididos em forma e substância - ou seja, o Plano de Expressão não é mera forma (significante), mas é forma que manifesta conteúdo; e o Plano de Conteúdo não é mero conteúdo, mas conteúdo organizado formalmente. Decorre daí que ambos são produzidos por regras próprias e demandam análises distintas. Na semiótica, por exemplo, se distingüe entre texto (expressão) e discurso (conteúdo), que demandam modelos distintos de produção, circulação e intepretação.
Uma das implicações disto para a leitura de textos é que o texto, entendido como Plano de Expressão, pode ser analisado em sua forma e contribuição para o conteúdo, mesmo sem se levar em conta que tal análise ainda não lida com o seu significado (plano de conteúdo). Isto ocorre com várias metodologias exegéticas que, basicamente, se reduzem à análise do Plano de Expressão, não se dando conta de que a expressão material do texto ainda não oferece o seu significado "completo", carecendo da análise do Plano de Conteúdo. E daí? (1) Daí que só se encontra uma parte do sentido, aquela parte oferecida pela "substância" da expressão. Como há um sincretismo entre texto linguageiro e discurso, fica-se com a impressão que se chegou ao "todo" do sentido (2) Muitas aporias sobre "fontes" prévias à forma final do texto poderiam ser evitadas levando-se em consideração esta distinção, pois, por exemplo, contradições na expressão não necessariamente representam contradições no conteúdo, assim como falta de coesão textual não implica em falta de coesão discursiva. Lembra-se de que incoerências e falta de coesão textual são a principal "evidência" buscada para se encontrar as fontes de um texto?

PS: Charles Peirce também ampliou a fórmula binária simples de Saussure, acrescentando o "interpretante", mostrando que o significado sempre depende da interpretação que se faz do signo e que a interpretação é co-produtora do significado. Em terminologia da lingüística da enunciação (adotada por vários semioticistas), (a) quem escreve um texto sempre realiza um trabalho de interpretação de outros textos, que estarão presentes no novo texto, de modo que todo texto é plural; (b) quem lê um texto co-enuncia - ou, co-produz sentido com quem escreve o texto. Na leitura popular latino-americana José Severino Croatto foi quem mais se aproximou desta forma de entender o processo de interpretação, em seu livrinho Hermenêutica Bíblica que merece ser reeditado urgentemente.

domingo, 18 de abril de 2010

Exege e suporte físico

Coloquei abaixo um vídeo do youtube que apresenta, em forma de paródia, o impacto que ocorreu com a mudança de suporte de leitura do rolo para o códex (livro primitivo).

Acho que o vídeo é auto-instrutivo, havendo evidentes alterações de um suporte para o outro que trazem implicações para o entendimento de seus conteúdos.

Na exegese, o suporte físico também importa!