sábado, 1 de maio de 2010

Link para a leitura de textos bíblicos

Abro um pequeno parêntese em nossas discussões para informar que foi colocado um link para a leitura de textos bíblicos na barra à esquerda do blog. Nada mais natural para um blog que trabalha com a leitura da Bíblia.

Ao acessar o link será aberto o site da Bíblia Católica com o texto (versículos, capítulos, ou busca por palavras) solicitado. Nesse momento, caso o leitor deseje, ele poderá pesquisar outras versões bíblicas disponíveis. Por isso tudo, esse novo recurso do blog será muito útil a todos os leitores.

Aquecendo os olhares

Antes de entrar na discussão imagética propriamente dita, algumas informações teóricas. Para a semiótica greimasiana, o que o Paulo começou a propor para discussão é chamado de intersemioticidade ou transsemioticidade. Duas semióticas distintas trabalham o mesmo tema. A semiótica textual e a semiótica visual. Texto e Imagem são dois planos de expressão distintos, os quais, neste caso, manifestam o "mesmo" tema e, ao fazê-lo, produzem distintas significações. Assim, se para entender um texto, precisamos saber analisar a materialidade linguageira do mesmo, para entender as pinturas com que Paulo nos presentou, precisamos saber analisar a materialidade pictórica (forma, fundo, cor, iluminação, sombra, traço, tipo de tinta, tipo de tela, espaço, lugar de exposição, etc.). Materialidade essa que, para nós, vem sob outro suporte, o digital que interfere na materialidade pictórica, ao retirar o quadro do lugar "físico" e colocá-lo em um lugar "virtual". Enfim, para a semiótica, o texto de Apocalipse e os quadros são planos de expressão figurativos. A figuratividade é primária na produção do sentido (mesmo no caso de textos), sendo revestida tematicamente como uma espécie de secundidade (para usar um termo que vem de Peirce), o que exige que a interpretação das figuras não seja feita "figura a figura", mas mediante a percepção dos "percursos figurativos", pois é nesse arranjo, nessa comunalidade de certas figuras umas com as outras, que se constrói o tema.

Um detalhe me chamou imediatamente a atenção nessas telas de diferentes autores, lugares e épocas. As imagens do dragão-serpente sempre o representam com nós ou espirais na cauda-corpo. Essa era uma forma comum na representação de serpentes e dragões na Europa, também na Antigüidade Tardia, não só na Idade Média. Formas espirais podem representar o cosmos, uma espécie de simbiose entre a figura do dragão-serpente e o universo; podem representar uma harmonia com a natureza, pela semelhança com raízes de grandes e antigas árvoras que, fora do solo, desenham formas similares. Seria essa espiralação, no conjunto das formas de cada quadro, um modo de representar a malignidade do mundo, em contraste com representações "benignas" de dragões e serpentes, como figuras de sabedoria e cura?

O segundo detalhe que me chamou a atenção foi a representação do menino. Não parece ser um recém-nascido, devido à proporção entre o seu tamanho e o tamanho da mulher (mas não conheço suficientemente as proporções nas pinturas medievais...), o que poderia sugerir uma valorização do Jesus menino mas não do Jesus bebê. Ademais, não se esconde o pênis do guri, o que representa a inocência do mesmo - se ele representa Jesus, representa um ser sem pecado, de modo que não é necessário "cobrir suas vergonhas", o que se faz com todas as demais figuras, ou vestidas, ou com os órgãos sexuais invisíveis.

Olhando para o conjunto das imagens, fico com a impressão de uma forte tematização da luta entre o Bem e o Mal, ora mais dramática, ora menos, mas sempre uma conflitividade, um dualismo ético que, possivelmente, seja expressão também de um dualismo ontológico. Fiquei, também, com a impressão de que as nossas leituras mais comuns do Apocalipse são muito mais devedoras desse universo "medieval" do que do universo discursivo judaico-cristão primitivo. Será?

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Coisas para imaginar. A linguagem visual do Apocalipse.

Nós fomos treinados a descobrir verdades eternas nos textos bíblicos. Mas a Bíblia é muito mais um convite a ver e a imaginar do que a abstrair. No caso dos apocalipses o elemento visual e imaginativo é ainda mais marcante. Os textos são duplamente visuais. Em primeiro lugar, por que os profetas apocalípticos afirmam ter visto as coisas descritas e narradas em seus textos. E não há por que duvidar que, de alguma forma, estas narrativas tenham se originado de experiências visionárias, talvez em estado de transe. Em segundo lugar, por que as narrativas são verdadeiros convites para novamente vermos o que ali é narrado. O efeito retórico destes textos é provocado pela visualidade evidenciada em suas imagens: monstros descritos detalhadamente, que causam horror; cenas celestes, que causam maravilhamento e êxtase; cenas de batalhas e cataclismos que orientam à vigilância. Sem dúvida os apocalipses provocam o saber, o entendimento, mas se trata de uma compreensão que se dá pela contemplação imagética.

Devido a este elemento imagético é que se pode fazer uma introdução à apocalíptica e, em particular, ao Apocalipse de João, de forma visual. Na história de sua recepção o Apocalipse, mais que qualquer outro texto bíblico, recebeu recriações imagéticas. Elas tanto nos ajudam a perceber elementos centrais no texto, como também as escolhas dos leitures/expectadores de outras gerações. Iniciei nossa conversa sobre o Apocalipse 12 - um dos textos mais difíceis de toda a Escritura - postando uma mensagem sem palavras, apenas com imagens. As duas primeiras pertencem ao Apocalipse de Bamberg, do século 10. Lembremo-nos que a virada deste ano 1000 trouxe muitas especulações apocalípticas ao mundo medieval. A terceira imagem é do artista e místico inglês William Blake. Se vocês se dedicarem a comparar a primeira e a segunda com a terceira verão que representam olhares totalmente diferentes sobre a narrativa de Apocalipse 12.  Na última postagem inseri três imagens que cobrem a cena do Apocalipse 12 do Facundus Beato, uma cópia iluminada do comentário ao Apocalipse do Beato de Liébana, datada do século XI. Aqui já temos uma terceira leitura imagética do texto, procedente do cristianismo ibérico, que ,ameaçado pela invasão árabe, apresenta o texto com cores marcantes e imagens dramáticas. 

Sobre isso e sobre as tensões narrativas do texto, entre outros assuntos, seguiremos conversando, em diferentes olhares. Mas não gostaria de sobrepor já as imagens com as palavras. Fiquemos mais um pouco com as imagens.

Mais imagens, outras leituras.

quinta-feira, 29 de abril de 2010

"Um grande sinal apareceu no céu..." Primeiro, uma leitura imagética.

A questão é de relacionamento!

Nós nos relacionamos com uma pessoa, não com um livro!

A frase pode parecer provocativa, mas não é. Até por que há uma noção histórica em jogo. O contato com a divindade sempre é mediada. Inicialmente rituais e sacrifícios. Posteriormente, com a escrita, os ritos passaram para paredes, tábuas de barro, papiros, pergaminhos, papel, tela de computador. Mas vejam, falo de "mediação".

Nós, cristãos, provenientes de uma tradição judaica, devemos entender isso. Antes que houvesse Escritura, Deus relacionava-se com Adão, Eva, Abraão etc. Antes que houvesse Novo Testamento, Deus relacionava-se, em Cristo, com os apóstolos, Paulo, Tiago etc.

Minimizo as Escrituras? De forma nenhuma! Mas entendo que elas fazem a mediação entre eu e Deus em Cristo, entre a comunidade da fé e a Trindade. A Bíblia é preciosa para nós. "Luz para o caminho", como ela própria afirma. Mas é uma luz, em um caminho, que conduz para alguém, para o Deus revelado em Jesus. Não devemos nos satisfazer com o caminho, nem com a luz.

Afinal, todos conhecemos pessoas que, apesar de lerem a Bíblia e a idolatrarem, são maus cristãos, pessoas de quem, tristemente, devemos dizer que, ou conhecem pouco a Deus, ou simplesmente não o conhecem.

Testemunho. Boa palavra para indicar o tipo de abordagem que temos da Bíblia. Se alguém acha melhor falar de "regra de fé e prática", apesar das inconveniências já apresentadas por Paulo e Júlio, tudo bem, que usem tal expressão. Mas, o que eu acho mais importante, submetam a fé e a prática à relação com Deus em Cristo. Senão, correremos o risco de ouvirmos, como os religiosos dos tempos de Jesus, que sabiam de cor os textos da Lei, a frase: "Eles erram por não conhecerem as Escrituras e nem o poder de Deus" (Mt 22.29). Não é possível conhecer as Escrituras sem conhecer o poder (sem ter relacionamento) com Deus.

Teologia: criação de novos vocabulários

Enquanto preparamos os posts sobre Apocalipse 12, vamos conversando sobre exegese e teologia. Temos tido algumas discussões muito interessantes nestes primeiros dias como blogueiros. A maioria delas tem girado ao redor da questão da validade ou legitimidade de teorias, métodos, conceitos usados na interpretação da Bíblia ou frutos da interpretação da Bíblia.

Quando olhamos para a história da exegese e da teologia percebemos que o trabalho de exegetas e teólogos é, na prática, criar novas metáforas, inventar novos textos, novos vocabulários. E novos vocabulários são exatamente o que nos desafia, a partir do momento em que nos acomodamos aos antigos vocabulários. É assim com a teologia, com a exegese, ou com qualquer área do saber humano. Nós criamos permanentemente novos vocabulários mas só alguns deles "pegam". Quando "pegam" nós nos esforçamos por mantê-los, tratamo-los com carinho, paixão, até mesmo amor. Mas, um belo dia, eles envelhecem, perdem a sua força, a sua capacidade de nos encantar, de nos desafiar, de nos fazer ficar de bem com a vida.

Quando isso acontece, é hora de criar novos vocabulários. O círculo virtuoso do pensamento assim recomeça. Novos vocabulários são criados, trocamos conversas e discussões sobre esses novos vocabulários e, mais dia menos dia, um desses novos vocabulários "pega". Ficamos reencantados, nos acertamos com a vida, achamos sentido para o que pensamos, sentimos, fazemos. Os novos vocabulários passam a fazer parte de nossos corpos. Chegará, porém, um dia em que os novos vocabulários, como nossos corpos, ficarão velhos ...

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Regra vs. Testemunho ou Lei vs. Graça !?!

Concordo com a predileção do Paulo pelo termo "testemunho" em relação ao "regra de fé".

De fato, a idéia de "regra de fé" é institucional, necessária para garantir a identidade doutrinária de instituições eclesiásticas para as quais a uniformidade doutrinária é fundamental. Regra de fé pede obediência, sujeição, aceitação incondicional. Regra de fé está na mentalidade da Lei e do Contrato. Regra tem a ver com experiência, com corpos que se movem rigidamente sob a batuta do comandante.

A noção de testemunho, por outro lado, é pessoal e não institucional. Testemunho pede fidelidade e não obediência, parceria e não sujeição, diálogo e não aceitação. O testemunho está na mentalidade da graça e da aliança. O testemunho tem a ver com a vivência, com corpos que se movem com liberdade e harmonia, ao som da melodia.

Após dois mil anos de cristianismo ainda ficamos mais encantados com a Lei do que com a Graça. Haja graça!

terça-feira, 27 de abril de 2010

A Bíblia como regra. A Bíblia como testemunho.

Escrevo para dialogar com Esdras e com outros leitores que discordaram da minha afirmação de que "A Bíblia não é regra de coisa alguma". Antes de tudo quero reafirmar o que disse, mas também falar um pouco mais do que isso significa para mim. Afinal o que escrevemos neste blog é perpassado por nossas experiências como leitores. Não temos como objetivo reproduzir um manual, mas provocar os leitores a partir de nossas próprias práticas de leitura, em diferentes olhares.

Na minha história de leitor da Bíblia precisei carinhosamente exorciza-la enquanto regra de fé e prática. E isso por vários motivos. Um deles é que esta frase "regra de fé e prática" se tornou uma justificativa ideológica para todo tipo de prática que parte de seleções do texto bíblico e de interpretações particulares dele. Mas se enunciadas como tendo fundamento na Bíblia, "regra de fé e prática", pretendem ganhar valor universal. Mas você nunca ouve que comunidades vendem seus bens e os dão aos pobres em seguimento à Bíblia, mas sim que devemos reprimir sexualidade, bebida, contatos com pessoas de outros credos, aí sim, em nome da regra. Quem lê a Bíblia escolhe: tem um cânon dentro do cânon. E acho que isso é mesmo necessário. Afinal a Bíblia (a grande biblioteca) tem textos muito diversos entre si, com perspectivas e cosmovisões tão díspares, que o leitor tem que achar o seu jeito de navegar por ela. Isso não é relativismo pós-moderno, é decorrente de um mapeamento da linguagem e das perspectivas culturais dos diferentes tipos de texto da Escritura.

Na minha biografia precisei dizer não à Bíblia para continuar a amá-la. Não podia amá-la como conjunto de regras (e por fim como a única regra), de normas a serem cumpridas, como livro de itens de check list com os quais julgamos a vida das pessoas, dizendo-lhes: "ei, isto não é bíblico". Isto só pode tornar a Bíblia um livro odioso. Na melhor das hipóteses um livro chato, que leio por obrigação.

Para amar a Bíblia preciso considerá-la humana e lê-la em conjunto com outros textos humanos. E na verdade ela é um testemunho humano sobre Deus, sobre experiências de Deus, no mundo dos humanos. Ela fala a nossa linguagem, com toda a sua imperfeição e com toda a sua riqueza. Deus é transcendente, a Bíblia é polissêmica. São coisas diferentes. É por meio de suas metáforas muito humanas que podemos criar imagens de Deus.

No mais, caro leitor, acho que não conseguimos amar um texto regra. Lobo Antunes, escritor português que deu uma bela entrevista na Folha on Line de 24/4, conta que quando encontra um texto bom suas veias se unem às veias do texto. Acho que é isso que quero dizer quando preciso ler a Bíblia como uma experiência muito humana.

Quanto à pergunta se a Bíblia é um livro entre outros, se ler Paulo Coelho vale da mesma forma, eu diria que todos lemos textos por meio de outros textos. O leitor evangélico lê a Bíblia por meio e com as lentes dos seus autores evangélicos preferidos (normalmente conservadores norte-americanos). O leitor católico também tem seus textos auxiliares. O exegeta, seus comentários preferidos. O sola scriptura é mais um desejo que uma realidade. Não gosto de Paulo Coelho, mas para muita gente é um marco de sua história de leitor. E Paulo Coelho vai sim interferir na leitura de outros textos que ele venha a ler. As leituras não podem ser guardadas em caixinhas, como se pudéssemos dizer: agora regras de fé, depois poesia mundana, depois romances para divertir. Tudo está em diálogo com tudo. Neste sentido a cultura popular tem muito a nos ensinar. Ela coloca muitos textos (orais, imagéticos, melódicos e escritos) em diálogo.

Por fim, dispensar o conceito de "regra de fé e prática" me permite ler a Bíblia com atenção à sua dramaticidade. Comentamos há pouco o texto de Gênesis 22. Ele tem que gerar em nós indignação e não nos remeter diretamente ao Cristo sendo enviado pelo seu pai para o sacrifício. Ao ler um milagre de Jesus posso me maravilhar junto com o povo que assiste à cena, me emocionar até. Melhor que entender nisso atributos da segunda pessoa da trindade, etc. A Bíblia como testemunho nos permite amá-la, fazer escolhas, nos identificarmos com personagens, com narrativas. Também permite dizer não a outras.Ninguém pode ler por nós. Temos que fazer escolhas e achar caminhos no labirinto das palavras.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Enfoque & Método – 3º e 4º de 4.

Começo destacando que não vejo estes posts como uma “síntese” da discussão, mas como uma tentativa de clarear termos – o que talvez possa servir como base para uma posterior síntese, mas ainda não é isto.

Já mencionei a teoria e a perspectiva. Chego ao enfoque. Por enfoque quero dizer duas coisas: (a) o viés disciplinar específico de uma leitura em modo acadêmico; e (b) o viés devocional específico de uma leitura em modo eclesiástico. O enfoque pode ser sincrético com a teoria, ou não. Por exemplo, na exegese histórico-crítica o enfoque disciplinar predominante é o histórico. Há, porém, bastante utilização de enfoques da teologia, das ciências sociais (sociologia e antropologia) e de disciplinas do campo dos estudos literários. A teoria é historiográfica, mas o que se busca não é reconstruir a história à qual o texto faz referência, mas, ou o conteúdo teológico do texto, ou a sociedade subjacente ao texto, ou a conformação literária do mesmo (aqui se deve diferenciar enfoque literário de teoria literária). Em exegeses com teoria feminista é comum o enfoque disciplinar ser histórico, literário ou sociológico, embora seja mais comum o enfoque crítico-ideológico, ou o dos chamados “estudos culturais” ou “pós-coloniais”. Nada impede, por exemplo, que se faça uma leitura com teoria semiótica e enfoque histórico; ou com teoria literária e enfoque sociológico; etc. Como o campo universitário está em grande ebulição, especialmente na área das humanidades, as fronteiras disciplinares estão em mutação e não se pode, ainda, formular uma descrição abrangente dos enfoques disciplinares possíveis. No modo eclesiástico, a leitura pode ser devocional no sentido estrito, com a pessoa buscando conhecer a vontade de Deus para sua vida; pode ser didático-homilético, quando se busca apresentar a vontade de Deus para outras pessoas; ou doutrinário-dogmático, quando se visa formular doutrina com força normativa para uma dada instituição (dogma).

Passo ao método. O método é apenas um conjunto de procedimentos para se chegar à consecução dos objetivos da leitura. O método depende, é claro, da teoria, da perspectiva e do enfoque. Mas ele também possui uma relação estreita com o objeto a que é aplicado. Na exegese histórico-crítica com enfoque sociológico, por exemplo, há diferentes métodos – o método derivado da vertente crítica, como o usado por Gottwald; ou o método funcionalista usado por Theisen no seu livro sobre a sociologia do movimento de Jesus; ou o método dos quatro lados da leitura popular latino-americana; etc. Na exegese feminista há métodos retóricos, métodos crítico-ideológicos, métodos literário-críticos, etc. A confusão que temos quando falamos em método é derivada principalmente do paradigma histórico (seja crítico, seja gramatical), que usa o termo método para se referir indistintamente ao método, propriamente dito, e à teoria, perspectiva e enfoque. Quando lemos um manual de exegese histórico-crítica, por exemplo, encontramos vários métodos que são chamados de críticas: crítica textual, literária, das formas, da tradição, da redação, da composição. Esses métodos são complementados com o método filológico (ou seja, pré-lingüístico) aplicado ao estudo dos conteúdos do texto. Na prática da exegese histórico-crítica nenhum autor “famoso” usa todos os métodos para ler o texto, todos são “especialistas” em um ou dois deles, com o filológico subjazendo a quase todos os trabalhos. No campo da teoria semiótica é possível desenvolver vários métodos em função dos distintos enfoques e perspectivas. Em meu Manual de Exegese, por exemplo, desenvolvi um método centrado no conceito de ação, no qual o estudo do texto, em sua dimensão discursiva, gira ao redor de cinco ciclos, em crescente grau de complexidade. Métodos (ou dispositivos analíticos, como preferem alguns analistas do discurso) são a dimensão mais maleável do processo de leitura. A sua validade depende da combinação das três dimensões mais amplas, bem como do objeto da leitura.

Em síntese (-:), quando lemos, mobilizamos teoria, perspectiva, enfoque e método. Nossas discussões sobre a exegese bíblica, portanto, não podem se restringir à questões de “método”, mas são discussões que envolvem essas quatro dimensões. Talvez esta descrição ajude a clarear alguns tópicos de discussão, especialmente um que é recorrente no âmbito acadêmico – a confusão entre teoria- enfoque-métodos-históricos, por um lado, e o reconhecimento da historicidade/contextualidade dos textos, por outro. Não é necessário usar teoria-enfoque-métodos-históricos para que se reconheça a ancoragem espaço-temporal, sócio-ideológica de um texto. A historicalidade (como prefiro chamar, ao invés de historicidade)de um texto não é patrimônio da História. É claro, porém, que os dominadores acadêmicos da teoria-enfoque-método-históricos não gostam disso, pois nesta descrição eles não são A exegese, mas UMA das exegeses possíveis.

Um pequeno parêntese ao texto do Júlio

Peço perdão ao Júlio por interferir na sua exposição. Ela está sendo tremendamente esclarecedora e funciona como uma síntese daquilo que temos discutido (sim, Júlio, a síntese é importante :-)

Desejo apenas comentar um aspecto complentar ao ponto de vista da leitura, focando o receptor, ou, como o Júlio tem denominado, a "perspectiva".

O teórico literário norte-americano Stanley Fish escreveu um livro intitulado: "Is There a Text in This Class?: The Authority of Interpretive Communities." (Há um texto nesta sala de aula? A autoridade de comunidades interpretativas). Nele Fish salienta que formamos "comunidades de leitores" que partilham de uma mesma "perspectiva" (para usar o termo do Júlio) que lhes dá determinada unidade de leitura.

O historiador da cultura Roger Chartier explora bastante essa questão quando estuda a história da leitura. Ele concorda com Fish e amplia sua argumentação ao pesquisar como grupos de leitores operam a partir de elementos em comum. Nem sempre essa questão é perceptível.

Os dois teóricos nos ajudam na discussão ao propor que a "perspectiva" extrapola a questão individual. Nós somos formados por elementos comuns a um determinado meio e grupo. Isso não significa que não possamos diferir ou nos distinguir desse meio, mas sim que devemos reconhecer que nos nossos processos mentais e mesmo de escolha existem fatores sociais, culturais, religiosos etc., que são determinantes a nós e ao grupo ao qual pertencemos (militares, políticos, religiosos etc) e que diferem de outros grupos.

Trazendo essa teorização de modo prático para a questão da interpretação da Bíblia, tal teoria ajuda a entender a razão pela qual há divergência interpretativa entre católicos, protestantes históricos, pentecostais, e neo-pentecostais (para não expandir para outros grupos não-cristãos). E mesmo dentre esses grupos há subdivisões.

Paro por aqui, pedindo novamente desculpas ao Júlio!

Perspectiva ou Interesse – 2º. de 4

Em post de domingo escrevi sobre teoria como um dos componentes do processo de leitura. Como estava dizendo, precisamos clarear certos termos, a fim de sabermos melhor o que fazemos quando estamos fazendo algo. Quando lemos, mobilizamos quatro elementos abstratos simultaneamente. O primeiro (logicamente falando) é a teoria (quer a “conheçamos” quer não). O segundo é a perspectiva (ou interesse, para usar um termo da sociologia do conhecimento, com Habermas). Por perspectiva quero indicar a opção ético-política (ou religiosa, ideológica, de gênero, etc.) que tomamos quando lemos. Sim! Estou afirmando que nenhuma leitura é neutra. Por mais que adotemos procedimentos “cientificamente” controlados, por mais que nos protejamos com teorias muito bem elaboradas, por mais que nossos enfoques disciplinares controlem o que fazemos – ler nunca é um processo neutro, ou seja, objetivo (no sentido racionalista ou positivista do termo).

Fazemos a leitura sempre a partir de um determinado lugar sócio-político, de um lugar cultural-religioso, de um lugar etno-gênero (“sei que é um termo estranho, mas etno-genérico ficaria pior!), de um lugar espaço-temporal. Esses lugares constituem a nossa perspectiva. A leitura feminista, a leitura de raça, a leitura popular latino-americana, a leitura intercultural (e outras) têm revelado essa face da leitura há pelo mênos três ou quatro décadas. A leitura sociológica no primeiro mundo também, já percebia a presença do fator sócio-político na exegese científica. Isso é tão óbvio que não conseguíamos enxergar na academia. Começarei com um exemplo prosaico, banal. Preste atenção às bibliografias das grandes obras acadêmicas relativas à leitura da Bíblia. Quase todos os ítens estão em inglês ou alemão. Quase nada em francês, menos em espanhol, menos ainda em italiano, menos ainda em português – sem falar em hebraico, japonês, russo, etc. Descontando os idiomas nos quais não se faz mesmo pesquisa bíblica, ainda assim temos um claro desvio político e cultural aí presente. Outro exemplo prosaico – praticamente não há judeus que escrevem “teologia bíblica”, embora vários escrevam comentários para as grandes séries internacionais. Por quê? Porque os judeus lêem a sua Bíblia de outro jeito, de um jeito que não precisa mesmo de uma “teologia bíblica” que unifique os múltiplos discursos bíblicos.

Deixo os exemplos prosaicos para trás. Nossas opções éticas e políticas interferem decisivamente no modo como lemos as Escrituras. Por mais que usemos métodos, enfoques e teorias “cientificamente” elaborados, essas ferramentas todas são delimitadas e direcionadas por nossa opção ético-política. Quando estava pesquisando para escrever minha tese, constatei, por exemplo, como o mesmo livro bíblico podia ser lido de formas antagônicas por praticantes do mesmo jeito histórico-crítico de ler a Bíblia. A diferença? Na perspectiva. Um autor (homem), por exemplo, lia a legislação do Deuteronômio sobre as mulheres e via nessa legislação um avanço social favorável à mulher. Uma exegeta feminista via na mesma legislação outro instrumento de controle patriarcal. Um exegeta europeu via na legislação deuteronômica sobre impostos uma clara consciência de justiça, enquanto outro via na mesma legislação um instrumento de opressão. Um exegeta cristão via no capítulo 15 de Deuteronômio um projeto de reforma social de “esquerda”, um exegeta judeu via no mesmo texto um projeto elitista de disrupção social da vida dos camponeses judaítas. Poderia multiplicar os exemplos à exaustão.

Na prática, independentemente da teoria ou do método, a perspectiva é decisiva na hora de interpretar o texto bíblico. Em linguagem da semiótica discursiva, estamos mais uma vez no terreno da interdiscursividade (no espaço-tempo da recepção). Com maior ou menor base na tradição milenar de leitura bíblica, nós leitores da escritura formamos nossos juízos éticos. Esses juízos, por sua vez, moldam nossa perspectiva. Esta, por fim, completa o círculo e interfere em nossa leitura da Bíblia, até que formemos (ou não) novos valores e, assim, sucessivamente.Quem leu “A Libertação da Teologia” de Juan Luis Segundo sabe bem do que estou falando. Quem não leu, pode até saber melhor...

Esta forma de ver as coisas é que me faz dizer, por exemplo, que leio a Bíblia, entre outras razões, para construir um projeto de vida fiel a um dos projetos “bíblicos” – interdiscursivamente fiel, de modo que não se trata de mera repetição, ao estilo fundamentalista ou conservador, de uma espiritualidade ou uma política dos tempos bíblicos. Assim como o Paulo escreveu, também não tenho nenhum interesse em ser um javista tribalista, ou um deuteronomista, ou um cristão primitivo. Mas, como cristão, quer eu queira quer não, a Bíblia tem papel decisivo na elaboração de meu projeto de vida – a favor ou contra ou tanto faz.

domingo, 25 de abril de 2010

Teoria?? Método?? De que estamos falando afinal??

As nossas interessantes discussões neste blog têm mostrado, entre outras coisas, como nossa terminologia é imprecisa. Ora falamos de método, ora de teoria, ora de paradigma. Talvez fosse bom colocar alguma "ordem na casa" para não ficarmos tropeçando nos brinquedos largados pelo chão. Penso que teríamos mais possibilidades de descrever melhor o que fazemos quando lemos a Bíblia se adotássemos uma visão mais ampla do processo de leitura. Esse processo tem quatro dimensões, das quais descrevo a primeira (para este post não virar um poste):

(1) Dimensão teórica. Por teoria entendo uma descrição bastante ampla e complexa, com alto grau de abstração, de um dado fenômeno em seu campo de atuação. Uma teoria não só oferece conceitos explicativos mas, principalmente, conceitos heurísticos, ou seja, orientadores da própria pesquisa que irá confirmar ou não a teoria. No caso da leitura, hoje em dia temos várias teorias disputando o espaço acadêmico (não entrarei no debate sobre o espaço eclesiástico, bem mais diversificado na prática, mas talvez nem tanto na teoria). Durante dois a três séculos, a teoria histórica dominou o cenário dos estudos bíblicos, desde o primeiro consenso wellhausiano sobre as fontes do Pentateuco. Dentro do trabalho histórico, porém, hoje em dia já não há mais consenso sobre que teoria da história utilizar - embora haja consenso (não unânime, é claro) a respeito de qual não utilizar mais. Desde o início do século XX, a teoria histórica tem sido confrontada pela teoria literária. Rendtorff, por exemplo, é da opinião que a crítica das formas foi o primeiro explosivo que causou a implosão do consenso histórico-crítico (pelo menos na pesquisa vétero-testamentária). Hoje em dia, várias teorias literárias disputam a hegemonia na pesquisa bíblica. Desde meados do século passado, teorias sociológicas e antropológicas começaram a disputar a hegemonia, especialmetne a partir do trabalho de Mendenhall sobre a aliança, aprofundado e ampliado por Gottwald. Desde a publicação de As Tribos de YHWH as teorias sócio-antropológicas não mais saíram do espaço acadêmico e, como nos outros dois casos alistados, várias teorias diputam esse espaço. Na trilha aberta pelas teorias sociais, entraram as teorias de gênero, raça e interculturalidade. No terreno da pesquisa bíblica a exegese feminista foi a que mais ruídos produziu no sistema e mais avançou a possibilidade de uma nova teoria interpretativa - a de gênero. Recentemente, a teoria da interculturalidade (ou da nova universalidade) busca preencher espaços similares. As teorias lingüísticas tentaram, mais de uma vez, entrar nesse espaço no século XX, mas foram rechaçadas pelos pesquisadores, basicamente pelo temor de que fossem ahistóricas, graças ao forte componente estruturalista e sincrônico das mesmas. Somente a partir dos anos 1980 é que teorias lingüísticas conseguiram conquistar espaço no mundo acadêmico, inclusive a semiótica e a análise do discurso (um dado adicional é que tais teorias vêm principalmente da França, um país e idioma periféricos na academia bíblica, que praticamente só sabe ler inglês e alemão). Mesmo assim, teorias lingüísticas só alcançaram alguma importância em escolas periféricas do mundo acadêmico da Bíblia (a Universidade de Sheffield, por exemplo). Hoje em dia, várias teorias lingüísticas, semióticas e do discurso diputam também o espaço acadêmico da leitura bíblica. Paralelamente a essas disputas, uma confrontaçao mais ampla tem se dado no ambiente bíblico-acadêmico. As novas teorias hermenêuticas do século XX, especialmente as de Gadamer e Ricoeur, acrescentaram um fator ainda mais disruptivo ao antigo consenso histórico, que se baseava primariamente na visão hermenêutica de Schleiermacher e Dilthey, que dava legitimidade teórica à busca da intenção do autor e do vínculo indissolúvel entre evento histórico e texto. Gadamer e Ricoeur (devedores de Heidegger e Wittgenstein, entre outros) romperam o consenso hermenêutico anterior. Criaram duas novas teorias do sentido: a de Gadamer que vincula o sentido do texto com sua recepção ao longo da história, sintetizada na expressão "fusão de horizontes"; a de Ricoeur, que enfatiza o fato de que o texto cria o seu próprio mundo, desligado do autor e dos acontecimentos após ser colocado em circulação, e ligado aos leitores e novos acontecimentos (Ricoeur só produziu algum impacto a partir da tradução de alguns de seus livros para o inglês). Esse consenso hermenêutico do século XX já está questionado, porém, especialmente nas obras de Derrida, Deleuze, Foucault, Rorty, Habermas-Apel, Vattimo e outros. Aos poucos essas teorias pós-hermenêuticas vão adentrando no espaço acadêmico bíblico, enfrentando ainda bastante resistência. Por fim (até onde consigo ler), as novas teorias pós-modernas sobre a mente, a linguagem e a evolução humana logo logo entrarão no campo da pesquisa bíblica, adicionando novas teorias ao já tão diversificado ambiente da pesquisa bíblica.

Em síntese, penso que é possível afirmar que estamos em um tempo de transição paradigmática. Um tempo como esse é marcado pela certeza de que o consenso paradigmático anterior não mais se sustenta, porém ainda não se conseguiu construir um novo, ou novos paradigmas de pesquisa. É tempo em que precisamos aprender a conviver com certezas incertas e apreender o alcance e os limites das novas teorias que disputam espaço no ambiente bíblico. Novo ou novos consensos não se formarão a partir de nossa voluntariedade, mas a partir de "acidentes" que, distribuídos ao longo do espaço da pesquisa bíblica globalizada, chegarão a um porto "seguro".