sábado, 8 de maio de 2010

Finalizando o que vê e os que veem

Júlio novamente abre perspectivas comentando minha mensagem. Ei-la:

"Concordo com sua descrição, mas gostaria de acrescentar um fator: a visão se torna pública por que ela compromete os ouvintes/leitores a participar do combate celestial que desceu à terra. Não se trata de, apenas, tomar conhecimento, mas principalmente de tomar posição em relação ao conflito apresentado pelo texto.
Conseqüentemente, no cap. 12 João traz os ouvintes/leitores ao centro da revelação, sob a ótica da demanda ética. Nas visões "subjetivas", o ouvinte/leitor não é implicado eticamente, mas epistemicamente. Nesta visão "pública" a dimensão ética assume primazia sobre a epistêmica.
Que vc acha?"

Concordo em todas as instâncias. Afinal, faz parte da literatura contar uma história com um olhar nela mesma e outro no leitor. E, em Ap 12, com quem os leitores se identificam? Com os cristãos que estão na terra. Por isso, é correto dizer que a visão não pretende apenas levar ao "conhecimento" dos leitores o que acontecerá, mas colocá-los no centro das tensões descritas. Indico isso na última frase de minha mensagem anterior: "A visão é compartilhada com eles para que se preparem para enfrentar a vinda do dragão à terra".

Achei perfeita a distinção entre dimensão "epistêmica" e "ética". E aqui o cenário assume novamente importância. Os leitores, na terra, são chamados a assumirem a mesma postura daqueles que, estando no céu, passaram por idênticas tribulações na terra. Portanto, a instância ética traz consigo um histórico cristão que pretende estimulá-los a continuar a luta contra o dragão/império.

E, lembremos, o livro foi escrito para igrejas reais, situadas historicamente no tempo e no espaço, ou seja, na terra, em tempos de imperialismo romano.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Ainda o que vê e os que veem

Cito o comentário do Júlio ao meu último post sobre a questão narrativa em Ap 12 para retomar o tema:

"A pergunta é ótima e não vou respondê-la propriamente. Apenas acrescento outro olhar. Do ponto de vista semiótico, a principal diferença entre textos em primeira e terceira pessoas é a relativa ao modo de recepção que o texto demanda. Textos em terceira pessoa provocam um efeito de objetividade, demandando do leitor a aceitação "objetiva" do que é contado, enquanto os textos em primeira pessoa provocam o efeito de subjetividade, mediante o qual a aceitação do que é contado depende da aceitação do enunciador. Neste sentido, a pergunta adicional seria: por que exatamente em Ap 12 o texto passa do efeito de subjetivade para o de objetividade? De que modo essa transição afeta o leitor - de então e de agora?"

Concordo com o Júlio. Acho que estamos próximos ou até dizendo o mesmo a partir de aportes teóricos diferentes.

Quando argumento que o narrador personagem, em primeira pessoa, apela para seu "testemunho" junto aos leitores a respeito de algo, isso é o mesmo que dizer que ele opera com a subjetividade e que a aceitação do que diz dependerá de seu status, como enunciador, junto aos leitores. Ao mesmo tempo, quando tenho um narrador em terceira pessoa, fora da história, ele possui mais elementos e estratégias para dar ao leitor a impressão de objetividade.

Mas, então, volto ao Ap 12. O uso da primeira pessoa do verbo "ver" é expressão do caráter pessoal de João como vidente, que é alterado no texto que estamos discutindo. Por quê? Coloquei a pergunta se ele não estaria abrindo a visão, que é apenas sua, para outros. E, nesse caso, os leitores (aproveitando a dica do Júlio) perdem a prioridade do acesso às informações. Uma pequena explicação. Em termos narrativos, a relação entre leitor e personagem pode ser construída de diversas formas pelo narrador. Uma delas é quando o personagem sabe mais do que o leitor, caso típico de Jesus Cristo. Outra é quando ambos possuem o mesmo conhecimento. E a última é quando o leitor detém um conhecimento maior do que o personagem. É o caso do Apocalipse e de textos visionários. O vidente tem um acesso especial às visões e as transmite aos leitores. Os demais personagens, como os habitantes da terra, no Apocalipse por exemplo, são desprovidos de tais informações.

Mas em Ap 12 não. Pelo menos é o que parece. Por isso há uma quebra de modelo de revelação. Mais gente, além de João, e de nós, leitores, tem acesso à visão.

Minha hipótese é que a visão é aberta para os cristãos que moram na terra a fim de tomem conhecimento do que os espera em breve, a partir do cp. 13. Afinal, aquele que foi expulso do céu e desce à terra é o "acusador dos irmãos" (12.10). Esse aspecto fica marcado também pela quebra de padrão narrativo. A narrativa tradicional apresenta os pronomes "ele/eles" (narrador em 3. pessoa) ou o "eu" (narrador em 1a. pessoa). A quebra se caracteriza pelo uso do pronome da segunda pessoa plural: "vós", que propõe um diálogo direto entre os que falam no céu e os que estão na terra (v. 12). Outra pista se encontra no verbo no tempo presente referente aos cristãos na terra, que indica uma mudança da forma narrativa usual, o passado. Eles são os que "guardam (presente) os mandamentos de Deus e têm (presente) o testemunho de Jesus" (v. 17). A visão é compartilhada com eles para que se preparem para enfrentar a vinda do dragão à terra.

Será que podemos ver desse modo?

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Quem conta a história? O narrador (?) e Ap 12

Lendo com mais vagar Ap 12, fiquei intrigado com a forma narrativa. Bem, do ponto de vista do gênero, temos um relato de visão típico dos textos proféticos. O profeta recebe uma visão e a descreve. Inicialmente parece que isso se dá aqui. Revelação de Jesus Cristo que é entregue mediante um anjo a João (1.1). Ele, em espírito, é comissionado a escrever o que vê (1.10-11). A partir daí ele é levado ao céu onde receberá as visões que compõem o livro (4.1). As cenas são marcadas pela repetição do verbo "ver" (orao - 5.1,2,6,11; 6.1,2,9,12;7.1,etc).

Pensando em termos narrativos, o narrador (aquele que conta a história) se configura em primeira ou terceira pessoa. Este pode ser onisciente, onipresente, intruso ou neutro. Aquele, protagonista ou narrador personagem. Bem, além dessas classificações o mais importante é a função que cada narrador desempenha. O teórico da literatura Franz Stanzel (A Theory of Narrative), afirma que o narrador em terceira pessoa, por não participar da história narrada, se coloca distante dela. Já o narrador em primeira pesssoa, por ser testemunha da história, coloca ênfase no caráter testemunhal de seu relato. Com isso, ele procura gerar maior cumplicidade com os leitores, mediante a autoridade de seu testemunho.

Por isso João utiliza o verbo na primeira pessoa: "vi". Ele é o visionário e o recipiente pelo qual a revelação de Jesus chega à sua igreja.

Pensando nessas categorias em Ap 12, João, no céu, não relata mais sua experiência particular, mas sim uma experiência coletiva. Isso já se dá em 11.19, onde o verbo "ver" é usado na 3a. pessoa do passivo aoristo: "foi visto". A mesma forma verbal aparece em 12.1 e em 12.3, salientando a experiência visionária que se expande à coletividade. Talvez possamos pensar em uma co-narração, tendo João e os cristãos como seus agentes?

Em 13.1 retorna a descrição pessoal de João. Ele volta a dizer: "Vi".

Para mim, permanece a questão: Por que no cp. 12 João abre mão da exclusividade narrativa, tornando coletiva a visão do quadro apresentado?

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Uma lista de BiblioBlogs ...

Alista cerca de 300 blogs internacionais referentes a estudos bíblicos com "seriedade". Não consultei todos, mas já vi um que saiu do ar, o blog da "Guilda dos Minimalistas".
http://biblioblogtop50.wordpress.com/biblioblogs

Um olhar semiótico para Apocalipse 12 - A mulher

Os posts anteriores geraram uma interessante discussão. Por isso fiquei esperando ...
Como não tenho muita paciência (hehehehe), vou dar um palpite.

Preliminarmente: (a) o texto aparentemente começa não em 12,1 mas em 11,15 ou 11,19 onde encontramos a forma pública "abriu-se", junto com 12,1.3 onde temos as únicas ocorrências, no Apocalipse, de vocábulo que indica uma visão pública ("viu-se") e não privada ("eu vi") - a visão de Ap 12 teria sido vista, assim, não só por João mas pelos seres celestes e pelas nações (11,15.16.18). (b) Chama a atenção o fato de que o texto fala de um "grande sinal" (v. 1) referindo-se à fragilizada mulher (gritando com dores de parto) e de um "sinal", referindo-se ao dragão (v.3) - se fosse levada em consideração a força física, o grande sinal deveria ser o dragão - temos, então, aqui, mais uma das muitas inversões da linguagem apocalíptica - a pequena mulher é grande, o grande dragão é pequeno. (Leonel já indicou alguns aspectos estruturais importantes, por isso não preciso indicá-los novamente).

A quem a mulher representa? A maior parte dos comentários tenta responder a esta pergunta. Do ponto de vista da semiótica seria mais apropriado perguntar: quem é este sujeito figurativizado por uma mulher...? Assim, não seria a preocupação primeira o referente extra-textual, mas o significado textual-discursivo, a partir do qual, se necessário, buscar-se-ia um possível referente histórico. (c) Aproveito esta sentença para retomar uma velha discussão, inclusive neste blog. Não é obrigatório usar métodos históricos para ler o texto contextualmente, respeitando a sua posição na história (podemos usá-los, mas eles não têm monopólio sobre a história vivida). É preciso, sim, conhecimentos históricos gerais sobre o período do texto, a partir dos quais, e informado pelo texto, o leitor buscará, mediante a análise das relações intertextuais e interdiscursivas, o ancoramento histórico-contextual do texto.

Exemplificando (como não tive tempo para uma pesquisa mais abrangente e aprofundada, faço apenas indicações sugestivas): A mulher estava vestida do sol, a lua estava a seus pés e usava uma coroa com doze estrelas.

1. O texto mantém relações interdiscursivas contratuais (de concordância) com a crítica vétero-testamentária ao politeísmo imperialista babilônico - sol e lua eram os principais deuses da Babilônia, e as estrelas também eram divinas. Assim como Gn 1 desdiviniza sol, lua e estrelas como meras lâmpadas, Ap 12 os diviniza como meros utensílios de vestuário. Como a Babilônia é símbolo do Império Romano no Apocalipse, isto indica o tom anti-imperialista da perícope. (Seria interessante pesquisar também a questão dos magos nos Evangelhos ...);
2. O texto mantém relações interdiscursivas polêmicas (de discordância) com a astrologia do mundo helênico, especialmente indicadas mediante as doze estrelas na coroa da mulher (não só símbolo das doze tribos do povo de Deus), representativas dos signos do zodíaco, negando, assim, um caráter fatalista à história (contrário à idéia da heimarmene no mundo helênico);
3. O texto mantém relações interdiscursivas polêmicas com a cosmovisão helenista do mundo (apoiada em parte pelas filosofias gregas), dividido em mundo supra-solar, sub-solar e sub-lunar, com graus distintos de "espiritualidade" e "materialidade". Assim, rompe com a idéia dualista ontológica, reafirmando o modo monista (anômalo) do pensamento judaico.

Temos, assim, pelo menos três isotopias (linhas temáticas) de leitura proporcionadas pelo texto: uma leitura político-religiosa (anti-imperialismo legitimado pela religião e defesa da não-violência como forma de transformação); uma leitura religiosa-existencial (anti fatalismo) e uma leitura filosófica anti-dualista. Destarte, revela-se a polissemia do texto, que deve ser indicada pelo texto e percebida pelo leitor. Estas isotopias sugerem que a leitura do texto apenas no modo soteriológico "igreja" vs. "mundo" é unilateral.

Fico por aqui, enquanto penso um pouco mais sobre a criança e outras isotopias por ela sugeridas ...

terça-feira, 4 de maio de 2010

Primeiro no céu, depois na terra

Inicio reafirmando, juntamente com Paulo e Júlio, a importância dos elementos concretos presentes na relação entre texto e leitor para uma interpretação adequada de Ap 12.

Paulo deu destaque à questão imagética. De fato, nós que vivemos sob influência de uma reflexão abstrata (tratamos de "palavras"), corremos o risco de perder aquilo que está mais próximo do texto e de nós mesmos. Como disse Paulo, as imagens falam por si mesmas.

Levanto outro aspecto. O Apocalipse se refere a "aquele que lê e aqueles que ouvem as palavras da profecia [...] (1.3)". Deixo para outros explorarem a indicação de que o livro é uma profecia. Mas destaco a frase "aquele que lê (sim, a melhor tradução é no singular, como fazem algumas versões)e aqueles que ouvem". O livro tem como contexto concreto a leitura comunitária. Uma pessoa lê e as demais "ouvem". O Apocalipse, portanto, foi feito prioritariamente para ser um exercício comunitário de audição. Essa é a concretude do texto que chega a nós.

Alguém dirá: mas e se não nos encaixarmos nesse contexto de origem? Bem, em geral é realmente isso que acontece. E, nesse caso, ficamos à mercê de exercitarmos um tipo de interpretação que pode gerar novos sentidos. É importante que tenhamos consciência disso, no mínimo.

Qual o impacto que a audição traz? Bem, precisaríamos fazer esse exercício juntos (fica aí a dica). Como nem sempre é possível, mantenhamos nossa leitura individual, mas tentando apreender as imagens em conjunto, e não apenas como termos e palavras dentro de versículos.

Pensando nisso, o capítulo se estrutura a partir de dois cenários: céu e terra (v. 1 e 3). Neles, há um embate entre dois personagens: a mulher e o dragão, tendo, cada um deles, anjos como coadjuvantes (v. 7).

O céu recebe destaque inicial. Nele se manifesta a mulher, grávida, e o dragão, desejoso de devorar o recém-nascido. É feita uma interrupção narrativa onde se afirma que a mulher foge para o deserto, ou seja, para a terra (v. 6), para novamente voltar à descrição do que está acontecendo no céu. Ali Miguel e seus anjos assumem a luta contra o dragão e seus anjos (v. 7). Estes perdem, e com isso deixam de ter lugar no céu. Agora o cenário começa a se deslocar para a terra, para onde Satanás e seus anjos são atirados (v. 9).

Nesse momento entra um coro de vozes que não são identificadas. Apenas exaltam a salvação e a autoridade do Cristo, pois o acusador dos "irmãos" (portanto, é a voz de cristãos) foi expulso (v. 10). Ao mesmo tempo, essas vozes parecem se situar no céu, visto que dizem que o diabo "desceu" até vós (v. 12).

O dragão, na terra, passa a perseguir a mulher que recebe asas para "chegar" ao deserto. Portanto, ela ainda não está lá, como o versículo 6 parecia indicar. Nesse sentido, do ponto de vista da mulher que vai para o deserto (v. 6), há um congelamento temporal, para que entre o coro (v. 7-12) e a cena volte para a mulher fugindo para o deserto, passando a ser perseguida pelo dragão (v. 13-14).

Nesse embate, a terra, que até então era apenas um cenário, torna-se um personagem e socorre a mulher (v. 16). O dragão abandona a mulher e passa a perseguir a sua descendência (v. 17). A descrição dele em pé sobre a areia do mar é uma estratégia narrativa para despertar suspense sobre o que virá.

É importante pensar no objetivo da cena. Ela começa no céu, onde se encontram os cristãos que já morreram (v. 10-12; 6.9)e termina na terra, onde estão outros cristãos, que serão perseguidos cruelmente pelo dragão (v. 17). O texto se dirige a eles, e a sequência mostrará o que os espera.

Esta foi uma abordagem inicial ao texto, tentando observar seus componentes e como eles se relacionam, ou seja, como opera o desenvolvimento do enredo. Um próximo passo é descer a detalhes de imagens, símbolos, e outros elementos que aprofundam a compreensão. O elemento "tempo", por exemplo, é sempre complicado no Apocalipse e, neste capítulo, ele parece transitar entre passado e presente, principalmente.