sábado, 29 de maio de 2010

Justo e justiça em Romanos

Na mensagem anterior, entre outras questões sobre Romanos, escrevi:

"Gostaria apenas de introduzir a discussão. Uma primeira questão é que Romanos trabalha de modo mais enfático o "justo" do que a "justificação", visto que o primeiro termo propõe um aspecto relacional, enquanto o segundo se inclina para um aspecto situacional".

Pretendo contextualizar e justificar a afirmativa. Em nossa teologia, o conceito de justificação está intimamente atrelado ao de lei, principalmente em Romanos. Dessa forma, em uma interpretação que toma como contexto uma cena de julgamento na qual o ser humano pecador está diante de um juiz justo(Deus), ele é justificado pela morte e ressurreição de Jesus Cristo. Esse ato é o aspecto legal no qual a justificação está circunstanciada.

Não nego necessariamente esse aspecto, mas o relativizo. Primeiro, por não sabermos exatamente se Paulo tinha em mente (e isso nunca saberemos) o tribunal romano. Depois, pelo fato de que corremos o risco de atribuir ao texto a compreensão moderna de lei, justiça, etc.

Um outro dado a ser considerado, e esse é histórico, provindo da Reforma, é que a justificação, nos moldes reformados, é tomada como um ato de Deus que nos considera justos, sendo que, de fato, não o somos. Claro que tal construção está em oposição aos aspectos soteriológicos da teologia católica romana.

Parece-me que esse aspecto está presente em Romanos, mas não é o mais importante. A ênfase no justo recebe destaque, como está indicado em Rm 1.16-17, e também pelas questões apontadas pelo Júlio na discussão sobre Habacuque.

Um ponto importante a ser considerado, e isso já é proposto a muito tempo (em termos mais recentes, sugiro a leitura do livro de James Dunn. "A teologia do apóstolo Paulo", da Paulus, onde ele constrói a teologia paulina a partir da carta aos Romanos), é que com bastante certeza o contexto no qual Paulo vai buscar o conceito de justo/justiça é o Antigo Testamento. Nele, tais termos estão vinculados à relação com Deus mediante a aliança. Segundo a aliança, quem é o justo? Não é primeiramente quem faz o certo, cumpre a lei, mas aquele que aceita relacionar-se com Deus. Por isso mesmo, a ira de Deus (a partir de 1.18) se manifesta do céu contra os homens que têm rejeitado relacionar-se com ele. Obviamente as exigências e leis estão presentes, mas como elementos que demonstram na prática uma vida vivida em aliança/compromisso com Deus.

Se aceitarmos tal proposição, veremos que o objetivo de Paulo em Romanos é discutir quem, de fato, é o justo, e como é possível viver tal vida.

Paro por aqui. Pretendo conversar um pouco sobre Rm 4 no próximo post.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Uma propaganda, fugindo do tema da semana, mas não do Blog.

Vale a pena ler uma recente publicação da Annablume & FAPESP. MENDES, Mariza B. T. No princípio era o poder. Uma análise semiótica das paixões no discurso do Antigo Testamento. Não tive ainda a chance de ler o livro com a devida atenção. Fiz apenas um vôo panorâmico. Ressalto a ausência de bibliografia especializada em AT que é, simultaneamente, vantagem e desvantagem pois, não submete a pesquisa da autora ao "padrão" da academia bíblica, deixando o seu texto, porém, sem os benefícios de informação contextual preciosa. Que a academia lingüística se interesse pela Bíblia é uma grande notícia. Falta, porém, mais diálogo...

quarta-feira, 26 de maio de 2010

O justo de Habacuque em Romanos 1

Começo meus palpites pelo livrinho de Habacuque. gosto de ver o livro de Habacuque como uma espécie de auto-psicoterapia, uma espécie de catarse religiosa diante da inconcebível percepção de que YHWH é o deus dos exércitos - babilônicos! O juízo está às portas, quem poderá sobreviver? Basta para "contexto", você pode completar à vontade.

No TM de Hc 2,4 há um contraste entre dois tipos de pessoas: a (?) e a justa. Por que a fórmula (?)? Porque a palavra hebraica usada em Hc 2,4 é um hapax legomenon (OK, há em Nm 14,44 o uso do hifil do verbo) - sua forma é a de um particípio pual, com função de adjetivo. ARA traduz por "soberbo", talvez por vinculação com uma palavra parecida que significa torre ou montanha (mas também pode significar tumor ou praga). No Lexico mais recente a palavra é traduzida por "ser impudente, ser tolo". Na NIV o verbo é traduzido por "estar inflado", na Biblia de las Américas por "o orgulhoso", e assim vai. A pista que o verso oferece, porém, é que o (?) tem a garganta torta, ou, traduzindo para nossas categorias de pensamento: seu desejo é pervertido, o que anima sua vida é um alvo errado, injusto; ou se quisermos uma expressão do NT: seu tesouro é mal escolhido e nessa má escolha está o seu coração. Quer mais concretude? Leia os versos seguintes de Hc 2 - essa pessoa, o contrário da pessoa jsuta, é aquela que acumula para si riquezas, poder, prestígio - e o faz de forma violenta... Uma tentação me acossa neste instante: traduzirei Hc 24, assim: "Eis o capitalista, seu projeto de vida não presta...".

E a pessoa justa? A pessoa justa é aquela que pratica a emunah - a fidelidade, amizade, companheirismo, parceria, solidariedade, etc. Embora até possamos traduzir essa palavra hebraica por fé (a LXX a traduz em Hc por pistis), o termo está tão sobrecarregado de significados religiosos institucionais que prefiro abandonar tal tradução. Ao contrário da pessoa (?), a justa sobreviverá ao juízo de YHWH porque ela é fiel a Ele e ao Próximo. A idéia do "remanescente justo" tem raízes aqui. Hc (o livro-discurso, não a pessoa física) sabe que os babilônios deportam reis, sacerdotes, ricos, generais, etc. Sabe que eles deixam os "pobres da terra" em suas próprias terras (os que sobreviveram à guerra, é claro). Sabe que, ironicamente, os babilônios fazem a reforma agrária que o rei judaíta não faz ...

E Paulo? Em Rm 1,17 ele usa a LXX com exceção da palavra mou (que faz Deus ser o sujeito da fidelidade). A pessoa justa é uma pessoa ativa - exerce pistis. Que justo? Aquele em quem se manifesta a justiça de Deus ... Que pistis? A fidelidade solidária para com o próximo ... Daí eu tenho de mudar também o verso 16 - libertação para toda pessoa fiel, ao invés de "que crê"!

Para escapar da protestantização de Rm 1,16-17 minha sugestão inicial é: não traduza pistise pisteuw por fé e crer, mas por fidelidade ... Não traduza swterian por "salvação", mas por livramento ou libertação ... Em outras palavras, leia Paulo a partir de Habacuque e não Habacuque a partir do Paulo protestantizado.

terça-feira, 25 de maio de 2010

O justo em Romanos

Começo, com certo atraso, a discussão de um novo texto. Proponho Romanos 1.16-17:

"Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: o justo viverá por fé" (Bíblia Sagrada. Tradução de Almeida, versão atualizada).

Gostaria apenas de introduzir a discussão. Uma primeira questão é que Romanos trabalha de modo mais enfático o "justo" do que a "justificação", visto que o primeiro termo propõe um aspecto relacional, enquanto o segundo se inclina para um aspecto situacional.

Uma segunda questão diz respeito à tradução da citação feita de Habacuque, que recebe uma primeira versão de Paulo, mas seguem-se várias versões no decorrer da história.

Uma terceira abordagem se relaciona à interpretação contextual que é vital para o entendimento da carta. Ao invés de vê-la como um texto teológico sem a contaminação de questões contextuais, como propôs Melanchton, e parece que foi seguido pela grande maioria dos intérpretes/leitores da carta, é fundamental integrar em sua interpretação os aspectos do contexto histórico vivido pela igreja em Roma.

Fico por aqui, aguardando outras opiniões para que possamos prosseguir.