sábado, 26 de junho de 2010

1 Sm 1. "Personagens"

Os personagens são configurados pelo narrador com objetivos retóricos. Eles exercem a função de protagonistas (herói e anti-herói) ou antagonistas.

O protagonista é o personagem principal. Ele pode ser o herói - aquele que possui características superiores às de seu grupo. Um exemplo clássico de protagonista herói é Jesus Cristo. O personagem protagonista também pode ser anti-herói, aquele que está ocupando a posição central, mas, no entanto, não tem as características esperadas de um herói. Um exemplo: Jonas. Já o antagonista é aquele que se opõe ao protagonista, configurando a tensão dentro da narrativa. Ele é o vilão da história. Exemplos típicos são Acabe e Jezabel, os fariseus etc.

Os personagens também são classificados quanto à caracterização. Eles podem ser redondos ou planos. O personagem plano é aquele descrito com poucas características e sem profundidade, sendo facilmente identificado pelo leitor. Em narrativas bíblicas tais personagens geralmente exercem apenas uma função. Já os personagens chamados redondos são principalmente os protagonistas, embora alguns antagonistas possam ser igualmente inseridos nessa classificação. Tais personagens são bastante desenvolvidos e complexos, podendo receber características físicas, psicológicas, emocionais, morais e espirituais. Exemplos típicos de personagens redondos são Moisés, Davi e Jesus Cristo.

1 Samuel 1 apresenta os seguintes personagens: Elcana, Ana, Penina, Senhor, Eli e Samuel. Quanto à classificação, Elcana, Penina e Eli são personagens secundários e planos, visto que não temos muitas informações a respeito de suas características e eles exercem função secundária na história. Samuel é um personagem, mesmo que não atue ou fale. Segundo Cássio Murilo Dias da Silva, a mera aparição de um personagem já é suficiente para caracterizá-lo na narrativa (SILVA, 2000, p. 70). Samuel é especial e simboliza a transformação que o Senhor efetuou na vida de Ana.

Ana é o personagem principal – a protagonista. Agora, ela é heroína ou anti-heroína? Analisando o contexto da sociedade patriarcal da época, apenas o fato de ser mulher já a colocava em um plano inferior aos homens, sendo considerada somente como um bem do esposo. A principal função da mulher era prover descendentes – aí entra outro fator desqualificante de Ana, uma vez que era estéril. Ela é o típico personagem anti-herói, ou uma heroína às avessas, com características inferiores ao grupo ao qual pertence. Apesar de ser a primeira esposa, ela é a que não pode gerar filhos. É possível que Elcana tenha se casado com Penin somente por que Ana não lhe dera herdeiros. Há uma oposição entre os personagens Elcana, o homem descrito em suas origens nobres (v. 1), e Ana, a mulher estéril que não dará continuidade à família.

Ana é descrita com uma variedade de características físicas, psicológicas, sociais, morais e espirituais. O modo como o narrador apresenta tais dados tem como objetivo produzir interação entre leitor e personagem. Quando a característica é exposta diretamente pelo narrador por meio de comentários, o leitor pode confiar nas informações e não há necessidade de questionamentos. Uma reflexão mais aprofundada é exigida quando o narrador coloca o personagem em primeiro plano, falando e agindo. Nesse caso o leitor recebe a tarefa de elaborar suas conclusões a partir do contato direto com o personagem.

No caso de Ana, o narrador nos informa de sua esterilidade (v. 5, 6), o que configura uma característica social – devido ao fato vergonhoso de uma mulher não poder gerar descendentes em uma sociedade patriarcal. Sabemos de sua angústia mediante seu marido: “Ana, por que choras? E por que não comes? E por que estás de coração triste?” (v. 8); pela voz do narrador: “com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou abundantemente” (v. 10); e por intermédio de sua própria fala: “Eu sou mulher atribulada de espírito” (v. 15). Apesar da situação de angústia vivida no início da narrativa, o final demonstrará que a mudança dos fatos a tornará grata.

Assim também ocorre com as características morais. Hannah é boa ou ruim? Honesta ou desonesta? O narrador não a julga, mas existe uma certa tensão sobre o assunto: Eli a julga embriagada, mas Ana defende-se afirmando não ser uma “filha de Belial” – não é ímpia. Nesse caso, o narrador expõe o ponto de vista dos personagens, omitindo-se de opinar. Ao final o leitor deverá, diante da história, definir quem está certo.

A principal característica à espera de definição pelo leitor é a espiritual: Ana é uma pessoa de fé, convicta. Esse é o ponto central do personagem. Na interação do leitor com Ana, essa característica deve ser assumida e encarnada na sua espera não passiva, “lutadora” (v. 26).

Ainda dentro das características espirituais de Ana, percebemos que a maior tensão se dá em sua relação com o Senhor. Como se opõe à protagonista, Deus pode ser entendido inicialmente como o vilão da história. Afinal, ele é a causa da esterilidade de Ana, que é o principal motivo de sua humilhação. E não se deve esquecer que tal fato se passa na Casa do Senhor, de ano em ano. No entanto, essa situação não se manterá. Deus se converterá em aliado de Ana ao final da narrativa, agindo e transformando sua situação.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Paixões e Valores em I Sm 1

1. O olhar semiótico possui várias semelhanças com o narrativo – por exemplo, ocupa-se das questões sintáticas e semânticas da temporalização, do enredo, das personagens, etc. Uma das peculiaridades da leitura semiótica dos anos 1990 em diante é o foco sobre as paixões manifestas no texto. Não se trata, é claro, de uma análise psicológica das personagens (o que se pode fazer fora do modo semiótico de ler), mas de uma análise das paixões enquanto objetos semióticos, que configuram (modalizam) os sujeitos e suas ações e relações. Trata-se de examinar, então, as chamadas “paixões de papel”, um componente da estrutura narrativa de todo e qualquer texto (ainda que sua presença seja ocultada na superfície discursiva e textual). Para quem gosta do assunto, as duas obras indispensáveis são: Semiótica das Paixões (A. J. Greimas & J. Fontanille) e Tensão e Significação (C. Zilberberg & J. Fontanille).

2. Vamos ao texto. Ana é uma das personagens principais do texto, apresentada com riqueza de detalhes, inclusive em seu percurso passional. Quero olhar para uma de suas paixões, explícitas, no trecho, que é assim traduzida em português “Por que teu coração está triste?” (BJ, ARA, Almeida 21) ou “por que te afliges?” (BP). O texto hebraico tem o imperfeito qal yëra` que é quase sempre traduzido por “fazer mal”, “ser maligno” – no léxico mais recente e amplo, somente 4 vezes o termo é traduzido por tristeza ou similar. Não vejo com bons olhos (um trocadilho, posto que em Dt 15,10 temos a frase “não seja maligno teu olho” – que no léxico é traduzido por “triste”!) essa tradução. A meu ver ela reduz o turbilhão passional vivenciado por Ana. Senão vejamos: Ana é a primeira esposa de Elcana (na ordem textual), mas não tem filhos, “porque YHWH havia fechado seu útero” (1,5b.6b). Sendo estéril, Ana não participava plenamente do sacrifício anual e era humilhada pela segunda esposa, Fenena, mãe dos filhos de Elcana.

3. O que está em jogo não é apenas tristeza, embora Elcana talvez olhasse para Ana desse modo, pois perguntara: “Será que eu não valho para ti mais do que dez filhos?” (Deixemos de lado a paixão de Elcana – soberba? arrogância?). Não. Não se trata de mera tristeza, mas de algo muito mais profundo. Ana é descrita como tendo o coração cheio de (ou portador de) mal/maldade. Não em sentido ativo, mas em sentido passivo. Ana sentia-se amaldiçoada. De fato, YHWH a amaldiçoara com a esterilidade. O peso da maldição de YHWH sobre seu corpo era tamanho que ela se curvava e encurvava, incapaz de celebrar, incapaz de se alimentar. No verso 10, o TM a descreve como mäºrat näºpeš “interiormente amarga”, vítima do mal e da maldade de YHWH (?), da esposa rival e da sua sociedade. Hoje em dia possivelmente ela seria diagnosticada como uma pessoa deprimida, com grave depressão. Mesmo deprimida, ela se dirige a YHWH em oração e clama a ele para que atente para a sua “opressão” (Bo`ónî é termo usado para o sofrimento dos hebreus no Egito) e lhe dê um filho homem. Deprimida, humilhada, oprimida, incapaz de encontrar um rumo na vida, ela suplica a YHWH que lhe dê um “êxodo” – um filho homem. Pedido estranho. Não radical politicamente. Por que não pedir a YHWH que mudasse a sociedade? Ela pede um filho homem – para que, de posse desse objeto valioso, ela fosse bem-vista (não mais mal-vista) pelas pessoas e pela sociedade ao seu redor. Quem sabe, assim, ela poderia olhar para si mesma também com outros olhos!

4. O sacerdote, observando-a em oração extática (êxtase de sofrimento, não de alegria, é claro!), julga-a embriagada (13-14), ao que Ana retruca: não estou bêbada, estou desgraçada (qüšat-rûªH), literalmente “de espírito arruinado”. Arruinada como fruto da opressão e humilhação que sofria cotidianamente e a deixava envergonhada, vexada, fechada para a vida (Kî|-mëröb SîHî wüka`sî 16b). Do fundo de seu desespero, porém, Ana faz um voto a YHWH: entregará a ele seu filho, fará dele um Isaque vivo (sacrifício vivo, santo e agradável a YHWH!). Voto votado, voto cumprido (1,19-28). Deprimida, amargurada, desesperada, arruinada, mas ainda assim cheia de fé e de esperança – ora, suplica, clama, vota e cumpre seu voto. Tudo na vida de Ana a conduzia para a morte – YHWH, Fenena, a sociedade, mesmo seu marido que a amava mas não a entendia ... Ana foi mais forte do que todos esses poderes mortais, suportou o peso da opressão e não se deixou vencer pelas paixões destrutivas que vivenciava em sua humilhação. OK! Ela não mudou as estruturas da sociedade. Mas que obrigou YHWH a mudar, isso sim! Ana fez com que o sacerdote da nação colocasse o “Deus de Israel” (17) a serviço de uma simples mulher estéril. Êxodo passional. Talvez no século XXI a oração de Ana fosse mais ou menos assim: “Deusa de todas nós, devolve-me a minha soberania sobre meu próprio corpo, reconhece meu direito a um ventre livre” ...

terça-feira, 22 de junho de 2010

1 Samuel 1. Análise do "tempo"

Continuo a apresentação dos aspectos narrativos de 1 Samuel 1 voltando minha atenção para o elemento "tempo".

É necessário não esquecer o que afirmei na mensagem anterior, que os dados da narrativa devem ser vistos primeiramente como componentes "internos" de sua estruturação.

Após introduzir a história com a descrição dos personagens - Elcana, Penina e Ana -, e a constituição dos cenários - estão em Ramataim-Zofim, mas também se deslocam para o santuário de Silo - o narrador apresenta um dado temporal ao dizer que a família subia para Silo de "ano em ano" (v. 3). Isso é importante por situar temporalmente o que acontecerá a seguir: a humilhação imposta a Ana por Penina. A informação fica ainda mais clara com a afirmação ao término da disputa entre as mulheres: "E assim o fazia ele de ano em ano" (v. 7). Ou seja, a humilhação se repetia anualmente no santuário.

Outro elemento temporal, este com a função de organizar toda a narrativa, surge quando Ana faz voto ao Senhor dizendo que, se ele olhar para sua aflição e lhe conceder um filho, ela o dará ao Senhor (v. 11). Isso significa que o tempo exerce a função de gerar a tensão que se manterá até o nascimento de Samuel. Esse aspecto é ainda mais intensificado quando, após desfazer o equívoco de Eli, que pensava estar Ana embriagada (v. 13), esta recebe a bênção do sacerdote: "Vai-te em paz, e o Deus de Israel te conceda a petição que lhe fizeste" (v. 17). Fica a pergunta: Deus responderá, de fato, a Ana? Quando e como fará isso?

A partir do v. 19 segue-se a descrição da gravidez de Ana e do foco que se coloca em Elcana que segue com sua vida sem mudanças. Novamente, como fazia anualmente, ele sobe para Silo (v. 21). Mas desta vez Ana não o acompanha. Para ela, surge um novo ciclo temporal. O que determina o novo tempo de Ana é seu filho Samuel. Ela irá para Silo somente quando a criança puder acompanhá-la (v. 22). O que determina seu tempo não é mais o sacrifício anual, que podemos denominar "genérico", mas um tempo especial, específico, que é vinculado especialmente a ela: a obtenção de seu pedido e a consequente manifestação de louvor e a entrega da criança a Deus que serão feitos no santuário (v. 24-28).

Portanto, se Silo, como cenário, é o local da humilhação e também da restauração de Ana, o tempo é o configurador da narrativa. Inicialmente ela participa do tempo de Elcana e Penina, tempo de sacrifício anual. Posteriormente surge um tempo próprio, especial, que é o de seu pedido pungente e o cumprimento dele com o nascimento de Samuel, que transforma sua vida.