sexta-feira, 9 de julho de 2010

Teoria literária, sociologia e Jeremias 31

As duas últimas mensagens do Júlio ilustraram didaticamente como a aplicação de elementos teóricos da semiótica, no caso, a sociossemiologia, abrem portas para a compreensão de textos bíblicos.

Isso me chamou a atenção para uma perspectiva semelhante do ponto de vista da teoria literária. O crítico Antonio Candido, de modo particular, traz uma contribuição bastante significativa a esse respeito.

No livro Literatura e sociedade, no capítulo primeiro,
Crítica e sociologia
, ele discute a relação entre literatura e sociologia. Partindo de posturas mais simplistas, que procuram dados sociais nos textos para
ilustrar a realidade social
, ele chega ao ponto central, segundo sua proposta.

Sabemos, ainda, que o externo (no caso, o social) importa, não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno
(p. 6).

Para Candido, os aspectos sociais são importantes como fatores de constituição interna da obra. Por exemplo, um determinado gênero literário, surgido em certo contexto social, será relevante à medida que condicione o modo como os conteúdos de uma obra serão dispostos.

É nesse sentido que vejo a análise do Júlio. Ele indicou os elementos sociais que estão presentes no texto, fruto do tempo e espaço de sua produção, mas voltou-se para o interior de Jr 31, indicando como esses elementos são utilizados pelo autor para produzir sentido.

Nesse contexto, a discussão sobre Deus e a proposta de uma visão específica dele não se torna abstrata, mas se constrói a partir das vivências sociais e religiosas que, ao mesmo tempo, são desafiadas e criticadas a partir de uma nova proposição apresentada em Jr 31.

Mais uma vez abordagens teóricas diferentes - semiótica e crítica literária - falam a mesma linguagem e se colocam à disposição para nos ajudarem no entendimento dos textos bíblicos.

Acesso a Deus, mas a que Deus?

Escrevo este post em reação ao post do Leonel sobre Deus em Jeremias 31. Reação de cumplicidade ...

Se, do ponto de vista sociossemiótico, a ênfase central do texto é o acesso a Deus, do ponto de vista teossemiótico trata-se, primariamente, de que Deus e de quem tem acesso a tal Deus. Leonel destacou, a partir do conjunto do capítulo 31, as várias descrições passionais de Deus (que, incidentalmente, revelam a dívida de Jeremias para com Oséias). Essas descrições passionais contrapõem um Deus pessoal, amoroso, relacional a um Deus impessoal, rancoroso, institucional. Notem, por exemplo, esta descrição das pessoas a quem Deus dirige seu amor:"os cegos e aleijados, as mulheres grávidas e as de parto" - exatamente o tipo de pessoas que estariam excluídas da congregação sacrificialmente reunida, posto que seriam pessoas impuras sob a lógica templário-sacrificial.

O contraponto, então, se dá entre um Deus que divide o mundo entre pessoas puras e impuras, oferecendo sua casa às puras e interditando o acesso das impuras - esse é o Deus da religião oficial da corte judaíta, sustentada pelo sacerdócio e seus templos, rituais, doutrinas e esquematizações discursivas. Esse Deus é contraposto por outro, um Deus que não divide o mundo entre pessoas puras e impuras, mas que divide o mundo entre pessoas que estão na sua família e pessoas que não estão - e oferece às que estão fora a oportunidade de entrar - esse é o Deus da religião herética dos profetas (mas, lembre-se, Jeremias era um sacerdote!), que tenta subverter a lógica da religião oficial mas, constantemente, é subjugada por essa lógica cujo aparato de poder derrota as heresias.

Porém, como a divindade dos profetas heréticos é teimosa, também as críticas proféticas são teimosas. Sempre reaparecem, subversivas, aqui ou acolá, hoje ou amanhã, atormentando as religiões oficiais e as acomodações pessoais a padrões religiosos não emancipadores (populares, de classe média, elitistas, etc.). Exegese e teologia se dividem entre as que apóiam e legitimam as religiões oficiais e suas acomodações na sociedade, e as que criticam e subvertem as religiões oficiais e suas acomodações na sociedade. Difícil é fazer a escolha certa, posto que exegetas e teólogos não possuem nenhuma qualificação especial e peculiar que lhes possibilitem diferenciar entre as escolhas. Difícil é também perceber quem fez a escolha certa, pois alguns de nossos padrões são tão rígidos que Jeremias, por exemplo, por ser sacerdote, ficaria na turma dos errados...

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Deus, um personagem maravilhoso em Jeremias 31

Li a mensagem do Júlio e fiquei pensando sobre o que poderia dizer. Sim, dizer, e não acrescentar.

Pensei, pensei, e resolvi ler todo o capítulo 31. Que impacto! É difícil dizer como esse texto explodiu em minha mente e desceu para meu coração (sim, teólogo também tem coração!).

Descobri Deus no texto. Não o Deus da teologia, definível, previsível, estático. Definitivamente não! Mas o Deus que se expõe absolutamente, talvez absurdamente para alguns. O Deus que encontra prazer em seu povo, em vivenciar a aliança com eles, independente do que aconteça. Que se entristece com o pecado e a dor das tribos de Israel. Que se une aos sofredores e aos pobres.

Afinal, somente um Deus maravilhoso poderia dizer:

"Com amor eterno eu te amei; por isso, com benignidade te atraí" (v. 3).

"Eis que os trarei da terra do Norte e os congregarei das extremidades da terra; e, entre eles, também os cegos e aleijados, as mulheres grávidas e as de parto; em grande congregação, voltarão para aqui. Virão com choro, e com súplicas os levarei; guiá-los-ei aos ribeiros de águas, por caminho reto em que não tropeçarão; porque sou pai para Israel, e Efraim é meu primogênito" (v. 8-9).

"Então, a virgem se alegrará na dança, e também os jovens e os velhos; tornarei o seu pranto em júbilo e os consolarei; transformarei em regozijo sua tristeza" (v. 13).

"Saciarei de gordura a alma dos sacerdotes, e o meu povo se fartará com a minha bondade, diz o Senhor" (v. 14).

"Não é Efraim meu precioso filho, filho das minhas delícias? Pois tantas vezes quantas falo contra ele, tantas vezes ternamente me lembro dele; comove-se por ele o meu coração, deveras me compadecerei dele, diz o Senhor" (v. 20).

Após ler esses versículos que falam de um Deus eternamente humano, penso que a nova aliança que Deus afirma fará com seu povo nada mais é do que propor a ele que sinta e atue como Deus faz.

Isso me parece de suma importância no texto comentado pelo Júlio quando afirma que o aspecto central de Jr. 31.29-35 é o acesso a Deus. O contexto permite entender que Deus não está criando nada novo em essência. Ele deseja apenas que seu povo sinta como ele, que tenha um coração de carne como ele, o Deus dos Exércitos, possui.

Manifestação maior e cabal de tal proposta será a encarnação do verbo, Jesus Cristo. Nele a nova aliança se concretiza. Aquele que, sendo Deus, resolveu tornar-se homem.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Semiótica e Enfoque Sociológico

Mudando de texto, mas não de testamento – Jr 31,29-35

O enfoque semiótico também se ocupa das questões sócio-culturais. Do ponto de vista da metodologia e teoria semióticas o exame “sociológico” deriva da análise da narratividade do percurso gerativo do sentido, que pode estar explicitada ou ocultada nos textos. Na análise da narratividade, uma das questões fundamentais é a detecção do objeto-valor do texto, posto que este é o conceito que explica a discursivização das lutas sociais.

Em Jr 31,29-35 podemos detectar como objeto-valor mais importante o acesso a Deus. A idéia da nova aliança tem a ver, neste aspecto, com o conflito social entre o monopólio sacerdotal do acesso a Deus e a universalização desse acesso mediante a nova aliança com YHWH.

O conflito se manifesta no texto jeremiânico nas seguintes maneiras: (1) a “revogação” da norma convencional e conservadora de que os filhos pagam pelos pecados dos pais, transferindo a responsabilidade moral da estrutura familiar patriarcal para o indivíduo; (2) a “revogação” do escrito (torá) da aliança mediante sua internalização no coração e mente dos indivíduos que entram em aliança com YHWH; e (3) a “revogação” do sacrifício como meio de perdão dos pecados, mediante o perdão direto de YHWH.

A nova aliança de Jeremias, então, aponta sociologicamente para: (a) uma estrutura social pós-convencional, baseada em indivíduos e não mais em famílias, algo ao estilo da modernidade ocidental, o que coloca a relação entre o crente e YHWH no âmbito pessoal e não institucional; e (b) o fim do monopólio sacerdotal sobre a instrução (torá) e o perdão dos pecados, reforçando a pessoalidade da relação com YHWH, que não precisa da mediação institucional (Templo+Sacerdócio) para ocorrer.

A primeira parte da proposta não se concretizou (senão a partir da modernidade ocidental), na medida em que a sociedade israelita permaneceu fortemente institucionalizada e, após o exílio, o monopólio sacerdotal da torá e do perdão se reafirmou no Judaísmo então nascente – monopólio depois transferido para a interpretação da Torá pelo rabinato. A segunda parte da proposta tem se concretizado na forma da resistência contra o institucionalismo religioso, tanto no Judaísmo antigo e contemporâneo, quanto no Cristianismo, quanto em outras religiões institucionalizadas em redor da monopolização do sagrado.

Se sairmos da sociologia e formos para a teologia, Jr 31,29ss é uma das bases judaico-proféticas do debate “Lei x Graça”, mostrando que o cerne da questão não está nos conteúdos normativos, nem no formato da experiência religiosa, mas na universalidade do acesso a Deus, desimpedido institucionalmente. Em outras palavras, “lei x graça” é outro nome para o conflito “poder x serviço”; “hierarquia x carisma”; etc.