terça-feira, 10 de agosto de 2010

Leitores e práticas de leitura

Pois bem. Eis-nos de volta à discussão sobre hermenêutica!

Esse fato é relevante, pois indica a necessidade que temos de melhor definir nossos procedimentos para que os resultados de nossa interpretação possam ser melhor avaliados.

O último post do Júlio foi muito didático e esclarecedor. Concordo plenamente que mediante textos podemos chegar ao leitor ideal proposto pelo autor/narrador. Embora nem sempre ele se encaixe muito bem no leitor real, o que pode gerar leituras e interpretações variadas, com observou o Júlio. Penso que, nesse sentido, editores de livros são importantes também por exercerem uma espécie de co-autoria. Nos textos que publicam eles colocam marcas da forma como acham que os livros serão melhor recebidos pelos leitores. São os chamados "paratextos". Incluem-se neles os textos de 4a. capa e orelhas, as apresentações, e a própria diagramação. Todos esses elementos pressupõem um tipo de leitor e procuram influenciá-lo. Podemos falar disso em outro momento.

O que queria chamar a atenção é para a dificuldade de definir o leitor. Umberto Eco e outros fazem isso, como o Júlio já indicou. Mas há um elemento precário na teoria. Achar que o leitor será exatamente aquilo que o autor propõe. Como já disse, isso pode acontecer e acontece. Daí eu julgo necessário o estudo das "apropriações" dos textos (Michel de Certeau fala disso em "A invenção do cotidiano", editora Vozes). Ou seja, conferir como os leitores se apropriam, dão sentido ao que lêem. Em textos antigos como a Bíblia, é impossível analisar como os primeiros leitores agiram. O que é viável é estudar os leitores que deixaram pistas de suas leituras.

Esse é um campo de pesquisa fascinante para mim. Hoje em dia me motivo mais a estudar, não a interpretação oficial das denominações cristãs, mas mais como, na base, as pessoas estão lendo e interagindo com os textos lidos. Como um cristão católico tradicional, ou um carismático, ou então um pentecostal, ou neopentecostal, ou presbiteriano, ou, ou, ou... se apropriam das leituras feitas. Como bem salientou Chartier, essa pesquisa não é fácil, visto que ela pressupõe que os leitores deixem registros das leituras. Mas é possível. Um exemplo apenas. Muitos leitores da Bíblia têm o costume de grifar textos que consideram importantes. Pois bem, pode-se tomar várias bíblias grifadas de uma determinada comunidade cristã e analisá-las procurando um padrão que as una e revele que tipo de textos bíblicos são mais importantes para eles e como isso pode-se sugerir determinadas hipóteses explicativas.

Bem, por agora é isso!

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Leitura e Conhecimento Enciclopédico

Em meu último post utilizei um termo da semiótica de Umberto Eco - o "conhecimento enciclopédico" - para destacar o fato de que, em certo sentido, todo texto é simultaneamente velado e desvelado. Em outros posts, usei o termo "heterogeneidade constitutiva do sentido" para falar da presença de outros textos e discursos em um texto - no ato de sua produção - destacando que nem sempre o autor de um texto intencionou que outro texto estivesse presente em seu próprio.

Estes dois conceitos podem ser usados tanto para explicar aspectos da produção quanto da interpretação de textos. Por exemplo, em resposta ao post do Leonel, não podemos construir, com certeza, o perfil de uma comunidade cristã antiga a partir do texto bíblico. O que podemos construir com alguma certeza é o "leitor implícito" do autor do texto. No caso do evangelho de Marcos, a estrutura do texto, os gêneros utilizados, as relações intertextuais e interdiscursivas, todas supõem uma comunidade de leitores familiarizada com a Escritura judaica. Ou seja, para "Marcos" essa era a sua comunidade "implícita" - se a comunidade "real" correspondia, ou não, a essa comunidade implícita, é outra história, ou estória (é de bom senso supor que o autor conhecia bem a sua comunidade, mas não podemos ter certeza disto) ...

No caso do conhecimento enciclopédico ou da heterogeneidade constitutiva (e interpretativa), podem existir tantas diferenças entre autor e "primeiros leitores", que estes podem chegar a interpretações radicalmente distintas da(s) intencionada(s) pelo autor de um texto. Voltando a Marcos: um leitor antigo do Evangelho que não conhecesse as Escrituras judaicas faria uma interpretação distinta da de leitores que as conhecessem - e mesmo neste caso, diferentes formas de incorporar interdiscursivamente (ou enciclopedicamente) os textos da Escritura construiriam diferentes tipos de leitores.

Por isso, prefiro falar em "possibilidades de sentido" que texto e contexto proporcionam aos leitores. Duas pessoas da mesma cidade, da mesma época, da mesma religião, no I século, e.g., não interpretarão, necessariamente, da mesma maneira o mesmo texto. Ou - as "surpresas" que Marcos preparou em seu texto poderiam ser "conservadorismo" para alguns leitores; surpresas radicais para outros, heresias para outros, etc., etc. (dialogando mais diretamente com o post do Paulo). Por quê? Porque os seus conhecimentos enciclopédicos teriam sido diferentes (um faltou às reuniões de estudo de Isaías na sinagoga, enquanto aproveitava para namorar uma gentia que lhe ensinava mistérios de Ísis. Poderia ocorrer também que na leitura de um texto bíblico uma parte da comundiade se desligasse do culto e ficasse pensando na volta de Jesus e resultado: dois conhecimentos enciclopédicos distintos na mesma igreja ...);

Se aplicarmos estes fatos teóricos ao nosso trabalho de leitura, dois mil anos depois da escrita do texto, em outra cultura, com outra língua, com outras técnicas interpretativas, etc. etc., as diferenças entre nossa interpretação e a do próprio autor ou as dos primeiros leitores tendem a ser imensas. Em outras palavras, a descrição da identidade de Jesus que enxergo em Mc 1,9-11 pode ser absolutamente diferente da intencionada por Marcos ou da reconhecida por "sua" comunidade de primeiros leitores. De modo semelhante, minha leitura de Mc 1,9-11 não será idêntica à do Leonel, ou à do Paulo, ou à sua, cara leitora ou caro leitor ...

Caímos então no relativismo (o demônio que atormenta os preocupados exegetas e teólogos)? Não. Caímos em nós mesmos, apenas. Damos conta da finitude de nossa vida e da nossa leitura. Damos conta da precariedade de nossa "Verdade". Damos conta da fragilidade de nossos saberes. Se lidarmos bem com isso, aprenderemos a dialogar e a aprender uns com os outros. Se não, tentaremos classificar as pessoas entre as "como nós, que conhecem a verdade" e as "diferentes de nós, que não sabem nada"...

Cristologia, textos e leitores. Um diálogo com os colegas

Utilizo esta mensagem para dialogar com Paulo e Júlio. É o diálogo, o trabalho a várias mãos e línguas que produz frutos além do esperado. Daí inquiri-los, perguntar-lhes, dialogar. Sempre há um caldinho a mais para sair.

Júlio e Paulo, cada um a seu modo, reagiram às minhas duas mensagens a partir de ângulos em comum. Os dois olham para o diálogo proposto pelo narrador aos leitores e à palavra final deste. Sim, o leitor, mesmo que leia equivocadamente, sempre terá a última palavra.

Júlio propõe uma leitura velada do segredo messiânico no relato do batizado de Jesus, acessível apenas aos iniciados, àqueles que tem condições de identificar tradições textuais e discursivas complementares, e até contraditórias, que são retrabalhadas pelo autor do evangelho e disponibilizadas por seu narrador.

Diante disso, pergunto, tomando como ponto de partida uma proposição um tanto ingênua, que identifica o evangelho de Marcos como dirigido a gentios, e o de Mateus, por exemplo, a judeus cristãos, em função deste conter muitos textos do AT e, portanto (daí a ingenuidade), poder ser compreendido adequadamente por eles. Volto à pergunta: como trabalhar com essa perspectiva de análise se, como indica Júlio, Marcos contém uma complexa rede de textos do AT retrabalhados? Ou temos que alterar o tipo de imagem dos leitores proposta pela exegese tradicional?

Já Paulo, também trabalhando com questões de tradições, mas em um caminho pouco trilhado, indica práticas de leitura em comum entre autor e leitores do evangelho. Mas as estratégias narrativas visariam, mediante inovações e mesmo escândalos, chamar a atenção dos leitores. Os textos marcanos estariam marcados, então, pelo conhecimento antecipado que autor teria dos destinatários e o texto do evangelho visaria, mediante a surpresa, o escândalo, a mudança de padrões de sentimento, pensamento e comportamento.

Pois bem, diante disso pertunto aos dois: como podemos pensar as práticas de leitura e de interpretação da comunidade primitiva, ou do grupo leitor do evangelho de Marcos?

Parto do princípio de que o evangelho é uma literatura indireta, ou seja, ele é escrito e enviado a um grupo ou grupos de cristãos que o lerão. É provável que o autor tivesse um contato esporádico com os leitores. De qualquer forma, ele provavelmente não estaria presente para esclarecer pontos de controvérsia no texto.

Nesse contexto, outra questão. Visto como no período os textos existiam na forma concreta de rolos de pergaminho principalmente, e estavam localizados nas sinagogas ou casas/comunidades dos cristãos, seriam esses os lugares (públicos) de interpretação? Digo isso por que geralmente temos uma perspectiva anacrônica, pensando que cada cristão possuía sua Bíblia e a lia em casa como fazemos hoje. Bem, sabemos que não era assim. O acesso às escrituras era comunitário nas reuniões da sinagoga - igreja. Portanto, a interpretação também seria coletiva. Certo? Como isso pode interferir nas propostas textuais e dialógicas presentes no evangelho?

Fico por aqui, no aguardo.