sábado, 28 de agosto de 2010

Óculos devolvidos... volto para o Mito e a literatura

Bem, devolvo os óculos para o Júlio. De fato, eles ficam melhor nele do que em mim. Afinal, não sou linguista e em questões ligadas à história da linguagem sou pouco mais que um leigo.

Mas acho que o diálogo que travamos a partir de alguns autores foi bem interessante. Aceito e acho pertinentes as correções que o Júlio propôs à visão do Northrop Frye, mesmo que existam discussões muito complexas e metodologias variadas a respeito da relação língua e texto.

E, é bom que se diga, eu e Júlio concordamos em vários pontos. Daí que a diversidade exposta nas mensagens, com aberturas e fechamentos, é um ponto alto que deve ser prezado neste blog.

Posto isto, quero comentar mesmo que rapidamente a questão do mito e literatura. Acho, sinceramente, que os teólogos, principalmente a partir de biblistas como Bultmann, ao incorporarem o termo “mito” aos estudos bíblicos, sob uma ótica própria à teologia e a conceitos relacionados à concepção da própria Bíblia, geraram bastante confusão.

Penso, inclusive, que é praticamente impossível, diante de posições já definidas a décadas, que alteremos substancialmente a discussão, como os próprios colegas têm colocado.

No entanto, acho que, pelo menos no campo literário, é possível alguma observação a mais. Parto, então, da Poética de Aristóteles, que trabalha o muthos – mito. Para ele, o mito é uma "imitação de ações", conceito vinculado ao de mimesis (=representação). Mas não apenas isso. É mais. É também uma "composição dos atos", uma ordenação da história contada na narrativa. Em outras palavras, o mito pode ser identificado com o “enredo”.

Uma outra observação deve ser apresentada. Para Aristóteles o mito, proposto na análise da tragédia, diferencia-se da história pelo fato de que esta cobre grandes blocos temporais, descritos em sequência cronológica. Já o mito, embora trabalhe questões totalizantes também, está mais restrito e não se prende ao cronos. O mito possui uma lógica interna ligada ao desenvolvimento de uma trama, mas não é necessariamente atrelado e refém da história.

Por isso mesmo o termo mito foi utilizado para classificar relatos de origem de povos antigos, que incluíam elementos sobrenaturais como deuses relacionando-se com seres humanos. Destaque-se que, nesses casos, salvo um engano, a definição de tais relatos como mitológicos se dá a partir de um preconceito racionalista que, por não aceitar a existência de seres celestes e divinos, classifica narrativas a respeito deles como irreais, ou seja, mitológicas.

Por outro lado, o positivo, acho que é possível afirmarmos que a história da humanidade se desenvolve muito mais a partir do conceito de mito do que de história. E que as nossas próprias vidas estão inseridas em uma perspectiva mitológica, entendida como um enredo em desenvolvimento, com variações e relativizações temporais onde, inclusive, seres “sobrenaturais”, para alguns de nós, estão presentes e atuantes.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Mito, Linguagem, Óculos

Em resposta à resposta de Leonel ao meu texto em resposta ao dele (hehehehehehe) ...

1. Para deixar mais claro em que discordo do post em que Leonel descreve a concepção de linguagem de Frye (seguindo Vico): não aceito o evolucionismo da linguagem em três fases, penso que é melhor dizer que a linguagem é um conjunto simultâneo de jogos e que as três "fases" de Vico-Frye são apenas "jogos". Discordar do viés evolutivo não é a mesma coisa que afirmar que a linguagem é ahistórica. É afirmar que as variações da linguagem não seguem um padrão evolutivo, mas apenas um padrão histórico. Ou seja, discordo da filosofia de história de Vico, adotada e reinterpretada por Frye. Penso que Frye confunde coisas diferentes: (1) historicidade das línguas, que variam ao longo dos eixos tempo-espaço-pessoa; e (2)evolução dos modos de validação da verdade, que ele acopla à evolução dos modos de funcionamento da linguagem. Discordo, por exemplo, da descrição que Frye faz da era hieroglífica (poética) em que teria havido uma espécie de fusão sujeito-objeto mediante energia divina ou similar - não vemos isso nos textos sapienciais egípcios ou mesopotâmicos, não vemos isso em textos técnicos-agricolas, não vemos em textos "astronômicos", mas vemos em textos religiosos, em textos mágicos e semelhantes.

2. Penso que, dito isto, fica claro que concordo com Leonel quando ele descreve a variação histórica das línguas naturais (variação, mas não evolução, pois este termo tem um registro teleológico, enquanto o termo variação é histórico, mas não teleológico). O vocabulário se altera, o sentido dos vocábulos se altera, etc. - ao longo, mais uma vez, dos eixos de tempo, espaço e pessoa (história, sociedade, cultura...). Também concordo com o novo post do Leonel, quando afirma a preponderância do fator religioso na época do AT. Mas, de novo, isso não corresponde a uma fase evolutiva, mas a um arranjo dos jogos de linguagem, tanto na formulação dos saberes, quanto na validação dos saberes.

3. Concordo, ainda, com as afirmações relativas ao exílio do jogo de linguagem mítico (ou sagrado, ou religioso) na Modernidade, mas concordo apenas e tão somente enquanto exílio do jogo de linguagem, e não enquanto superação evolucionária de um tipo de linguagem. Adorno & Horkheimer, por exemplo, na Dialética da Ilustração, ofereceram um interessante argumento em prol da afirmação do caráter mítico de elementos da meta-narrativa (linguagem pós Adorno...) moderna. Ou seja, o jogo de linguagem mítico continuou sendo jogado na Modernidade, mas camuflado, ocultado sob o manto do jogo da racionalidade. Neste caso, discordo do Leonel quando ele afirma que o homem moderno "negou Deus e abandonou o vocabulário relativo a ele" - o que os modernos fizeram (negando ou não negando a existência de Deus) foi secularizar o vocabulário religioso cristão medieval - salvação se tornou humanização, imagem de Deus se tornou dignidade da pessoa, escatologia se tornou progresso, poder pastoral se tornou poder estatal, etc. Os pós-modernos (afirmando ou não a existência de Deus) ressacralizaram vocábulos secularizados, mas não promoveram um "retorno" aos sentidos pré-modernos. (Lembro: os termos modernos e pós-modernos são usados aqui apenas exemplarmente, posto que há inúmeros modos modernos e pós-modernos em cooperação e conflitividade.)

4. Por fim, não vejo nada de problemático em utilizar o termo mito para nomear uma determinada característica literária - seja um gênero textual, o enredo, etc. Como a linguagem técnica é dependente da língua natural, muita vez somos obrigados a usar a mesma palavra da língua natural para expressar diferentes conceitos na língua artificial da "ciência". Basta apenas que saibamos que o termo é polissêmico.

Ufa! Fico por aqui, e aguardo a resposta do Leonel. Quem sabe também o Paulo mete a colher dele, assim eremos vários posts-respostas-propostas.