terça-feira, 31 de agosto de 2010

O mito dá o que falar


"Mito, fantasia e ficção são os motores da vida humana..." (Júlio Zabatiero)

"A compreensão da mitologia equivale a um recordar" (Iuri Lotman)

Muito rico o embate entre a visão de Leonel (crítico literário) e do Júlio (semiólogo). Não sei onde me posicionar. Gosto de Frye porque ele resgata a linguagem mítica e a devolve ao seu devido lugar na cultura ocidental. E neste lugar reconhece um papel de destaque para a Bíblia. Mas não li ainda o seu Anatomy of Criticism onde ele fundamenta sua leitura do mito e das fases evolutivas da linguagem (e da literatura). Não creio que ele tenha compartilhado da visão ingênua (para hoje, não no seu tempo) de Vico. Em todo o caso, concordando com o Júlio, rejeito o evolucionismo. A linguagem humana é constituída de muitas camadas sobrepostas, concomitantes. O mito é a mais profunda delas. E não é a abelhuda da ciência que vem a desbancar a velha e arrogante senhora. Por outro lado, apesar de gostar de semiótica, em especial da semiótica da cultura (Lotman, Uspensky), tenho a impressão de que mito não é a verdadeira praia deles. O livro de Roland Barthes, Mitologias, por exemplo, é mais uma crítica da ideologia na sociedade burguesa que uma análise da constituição e funções da linguagem mítica.

Meu momento atual em relação ao mito é de buscar novos caminhos. Minha formação em teoria de mito é alicerçada em Eliade e Campbell. Rendo tributo aos meus mestres e seguirei indicando sua leitura. Também me impressionou o famoso artigo de Lévi-Strauss: A Estrutura dos Mitos. Mas ele me deixa frustrado pelo fato dele analisar basicamente o seu elemento paradigmático. E mito é narrativa, antes de tudo narrativa, talvez relacionada a um rito. Bem, aqui temos mais um vespeiro. São ambos relacionados? Qual deles tem prioridade lógica e cronológica? Se se relacionam dialeticamente, como isso acontece? Muitos vespeiros...

Como já devo estar aborrecendo os leitores deste blog, que deveria - supostamente - lidar com a Bíblia, farei uma lista de questões que me ocupam a respeito do mito e do roteiro de leituras que tenho seguido.

a) Dei-me conta muito recentemente de que não entendo de mito ao ler duas obras primas de Roberto Calasso: "Ka" e "As núpcias de Cadmo e Harmonia". No primeiro ele narra os mitos da índia clássica, no segundo nos presenteia com uma bela leitura dos mitos gregos. Para ele os mitos só podem ser narrados. Mas na sua narrativa segunda dos mitos ele faz emergir sutilezas, temas recorrentes, variantes desprezadas mas fundamentais, a poesia e os temas ancestrais. 

b) Além do prazer estético com que os mitos nos presenteiam, para nós, teólogos e estudiosos de religião, é uma linguagem fundamental, anterior e mais poderosa que os dogmas, formadora de estruturas imaginárias da sociedade. Ou seja, quem quer estudar religião e seu papel na sociedade tem que estudar os mitos, uma vez que estão nas camadas mais profundas e duradouras de sua cultura e em estrutura psíquica. As ciências da religião começaram no século XIX como uma descoberta e elucidação de crenças e superstições de povos exóticos, mas de interesse por serem colonizados (Max Müller, Frazer e Tylor). Mas curiosamente o tema foi relativamente deixado de lado pelas ciências da religião, voltada, no Brasil, em especial, mais para estudos sociológicos. Quem hoje em dia trabalha com o mito, mantendo a vivacidade de seu estudo, são teóricos da linguagem e historiadores (entre eles os historiadores da religião). Sobre o papel que a mitologia pode ter para os estudos de história deixo como exemplo as obras de Hilário Franco Júnio, A Eva Barbada e Os Três Dedos de Adão, ambas com o sub-título "Ensaios de Mitologia Medieval". 

c) O mito não pertence apenas ao passado. Ele é uma força presente na cultura, que se faz novamente presente em novas narrativas. Quando lemos alguns autores (Kafka, Proust, Joyce, Tolstoi, Dostoievski, Saramago, Guimarães Rosa, Borges, Sábato, entre tantos e tantos outros) sentimos um arrepio que só pode vir do mito. Eles não refletem apenas e profundamente o seu tempo, mas há algo de mapeamento de mundo, de explicação da condição humana, de constatação do demoníaco no mundo, de forças antagonistas de criação e de caos, de reflexão sobre a invencibilidade da morte, de esperanças frágeis e teimosas. Para tentar entender esta estranha continuidade recorri a Eleazar Meletinski (da escola de semiótica Iuri Lotman. um curto circuito!?). Para ele o mito não importa apenas por seu aspecto de narração arcaica,  mas também como força mitopoética, mito-criadora. Desde este ponto de vista o mito está mais vivo do que nunca, em especial na arte. Mas... e na religião?


d) Na religião o mito foi colocado de castigo no cantinho ("tu no teu cantinho e eu no meu..."). Afinal quem envergonharia mais a religião no momento histórico (da modernidade) em que a burguesia quer expressar o evangelho com valores, com visão de mundo positiva e moderna? Os currículos teológicos sistematicamente desprezam a mitologia e a teoria do mito. Me lembro que no seminário estudei lógica formal (hoje estudaria o método ver-julgar-agir), ou seja, "coisas claras e distintas", adjetivos estes que nunca se aplicam ao mito. O lado demoníaco, caótico e nebuloso do cosmo e da existência humana são sistematicamente ocultados. O incosciente se estuda em aulas de teologia prática, mas não como conceito fundamental para entender a cultura. Gilbert Durand então, nem se menciona. Somos pobres bultmanianos dos trópicos.


e) Voltemos à Bíblia (pobre, esquecida neste blog!). Fazemos uma leitura absolutamente ingênua e adocicada da mesma. Cremos que nela encontramos imagens solares, guias certeiros para a vida, valores morais, rotas para a felicidade. Mas o que descobriríamos se exercitássemos uma leitura que permita revelar nas suas narrativas fundamentais tensões irreconciliáveis do cosmo e da existência humana? E se a Bíblia for um grande e complexo código de relações traumatizantes dos homens com sua divindade? Calasso nos ensina que a religião grega é formal e centrada nos rituais uma vez que é perigoso demais estar próximos aos deuses, fonte de todo o poder. Javé seria menos selvagem e perigoso? 

f) Deixemos a Bíblia. Uma negligência de todos nós na área de humanas: Acreditamos que as palavras habitam algum lugar por aí, fora de nossos corpos. Estudamos os diferentes sistemas da linguagem desprezando pesquisas que há mais de 20 anos nos mostram que a linguagem (e o mito, portanto) são funções do corpo. Nossa cognição do mundo se dá por esquemas metafóricos originados em nossas experiências corporais básicas. E há outros autores que vão mais longe, que mostram que nossas mentes são literárias, que criam projeções parabólicas e campos de mistura conceitual. Na metáfora está a origem. Isto não teria nada a dizer sobre a origem da religião e da sua linguagem por excelência, o mito?

Há outros autores na lista: Jean-Pierre Vernant, Marcel Detienne, G. S. Kirk, Eric Csapo, Jonathan Smith, Borges. Mas sobre eles comentaremos em outra ocasião.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Compartilhando óculos, lentes, saberes ...

Respondo à resposta do Leonel à minha resposta à sua resposta ..........

1. De fato, para um tema tão instigante como o do mito, há uma variedade de opções teóricas interessantes e legítimas. Um ponto em que concordamos (os três blogueiros) é o da superação do racionalismo positivista na maneira de avaliar a veracidade do mito. Nesse sentido, faço coro à fala do Leonel sobre o efeito negativo da proposta bultmanniana do mito na discussão teológica;

2. Havia terminado meu último post indicando que uma visão epistêmica do mito não impede que outras visões (também parciais) apresentem suas definições, o que Leonel nos ajudou com sua apresentação da noção de mito em Aristóteles. De fato, a polêmica com relação ao mito na exegese não se dá contra a "literatura", mas contra o racionalismo, ou positivismo, ou qualquer outro ismo que reduza o valor de verdade de outros modos humanos de produzir saber, atribuindo somente à "ciência" o acesso e o domínio da verdade e da validade (dando nome aos bois - a exegese histórico-crítica e a histórico-gramatical);

3. Estou tentando terminar a reescrita do um pequeno livro sobre história cultural de Israel nos tempos bíblicos. Nesse livro lido o tempo todo com a problemática da verdade, pois os fundamentalismos dominam o campo. Por um lado, os fundamentalismos de cunho religioso (judaico ou cristão) que enxergam nos relatos bíblicos descrições "positivistas" de fatos = "se está escrito assim, aconteceu exatamente dessa maneira". Por outro lado, temos os fundamentalistas historicistas que, de antemão, enxergam nos relatos bíblicos descrições míticas de fatos, ou seja = "está escrito assim, então só pode ter acontecido de outro jeito". As Escrituras judaicas não podem ser lidas desse jeito, mesmo quando desejamos reconstruir a história antiga do povo judeu - é preciso muita sutileza hermenêutica e histórica para, do "mito" chegar à "história cientificamente reconstruída";

4. Terminando. Não me sinto capaz de oferecer uma definição de mito. Acho melhor destacar algumas características que ressaltam à luz das discussões acadêmicas sobre o tema: (1) mito é uma forma de construção de saber sobre a vida humana no mundo, cuja veracidade e validade estão subordinadas aos critérios de validação intercultural e intersubjetiva; (2) mito é uma forma de comunicação que, além da qualidade estética e preferência pela forma narrativa, visa constituir identidades, projetos de vida, legitimar modos de exercício de poder, etc., de modo que sua validade não pode ser estabelecida apenas no campo isolado do jogo de linguagem mítico; (3) mito é uma forma de produzir saber que compete com as chamadas formas "modernas" de produção de saber verdadeiro, mas, simultaneamente, está inserida nessas formas modernas de produzir saber, por vezes até estruturando o modo científico ou racional supostamente verdadeiro em oposição ao modo mítico não-verdadeiro; (4) mitos exigem sensibilidade hermenêutica, que começa no "princípio de caridade" (D. Davidson, filósofo da linguagem, define o PC como a 'aceitação da racionalidade da enunciação do outro', independentemente de aceitarmos a validade ou veracidade de seu conteúdo), passa pela crítica e pelo conflito de interpretações, e chega à recriação de textos, saberes, jeitos de viver.

Mitos nos fazem viver a vida. Nem todos os mitos, porém, valem a pena...