quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

O mistério da mancha vermelha

Este título parece de texto policial. Mas logo ficará claro ao leitor. Ele é um artifício para mostrar explicitamente o que se encontra implicitamente em todas as leituras. Após as introduções ao gênero textual da narrativa feitas por Júlio e por Leonel, quero mostrar que narrativa é algo tão marcante na cultura humana que sobrevive mesmo em linguagens que quebram o paradigma da sucessão espácio-temporal. E exatamente por não considerarem este paradigma (pelo menos não da forma da narrativa tradicional), por traduzirem a narrativa a outro esquema semiótico é que elas são fundamentais para a interpretação. Digo fundamentais, não acessórias. Em algum momento neste blog comentei que há signos chamados discretos e os icônicos. Nada de terminologia complicada. Discreto é o signo que se apresenta em sequências, como no caso da palavra escrita. Apreendemos no ritmo da leitura. A ação da narrativa se reproduz de alguma maneira em nossas mentes na medida em que lemos. A narrativa vai acontecendo em nossas mentes conforme estes signos são decifrados. No caso dos icônicos é diferente. Eles se apresentam de uma vez. Imagem condensa espaço e tempo. Privilegia espaço, mas o tempo também está lá. E aí é que entra sua riqueza e contribuição para a interpretação: como na imagem tudo se apresenta ao espectador de uma vez, cabe a ele reconstruir em um grau diferente que na narrativa a temporalidade. Notem que falamos de "em um grau diferente". A imagem não é "mais verdadeira". Como se pudéssemos ver "como era", ainda que nos passe esta impressão na apreensão vulgar. Notem: na narrativa escrita temos que recriar as feições, cores, geografias, gestos. Eles estão no texto apenas em parte, como que sugeridos. Cabe ao leitor preencher seu texto de imagens. Na imagem propriamente dita, digamos, num quadro, as cores, feições, paisagens, etc nos são dados, mas não a sequência de acontecimentos, a sequência de falas. Tudo nos é dado de forma densa e sobreposta. Nos dois casos temos que reconstruir ou, dizendo de forma mais apropriada, construir com o narrador. Em sentido estrito o texto ou a imagem não dizem nada. Se eu não imaginar o que o texto sugere, sua narrativa não se efetiva em minha mente. Se eu não ampliar narrativamente o que uma imagem traz condensadamente, não há narrativa. Isso é assim pelo menos na leitura vulgar, de todo o dia. Há formas de texto e de pintura que pretendem chamar a atenção exclusivamente para o que se apresenta ao leitor/espectador. Mas este tipo de texto e de pintura perde muito em figuratividade.

Vamos exercitar um pouco de leitura visual de núcleos narrativos do livro de Rute. Apresentarei agora uma imagem do livro. Ela servirá para notarmos a importância da cultura visual para a compreensão dos textos bíblicos na história da recepção. Mas também nos proporcionará um experimento para nos sensibilizarmos com o papel ativo do leitor espectador diante de texto e de imagem. 

Veja com muita atenção esta imagem:




Aqui temos uma representação do encontro de Rute com Boáz. Foi pintada por Chagall. Mas não quero dizer agora nada sobre ele. Nosso exercício não é sobre história da arte ou sobre o gênio do artista, mas sobre formas de recepção do texto bíblico na cultura visual. 
Se você (como a maioria de nós e, se for de origem evangélica, mais ainda) não sabe o que fazer ao se defrontar com imagens, faça a si mesmo as seguintes pertuntas:
- Que lugar na imagem ocupam as pessoas e os objetos (direita-esquerda, centro-periferia, acima-abaixo)?
- Onde fica projetada luz e há destaque por meio de cor?
- Observe os gestos. As feições.

É por meio destas coordenadas que a imagem reorganiza (ou: traduz) as sequências de tempo e espaço da narrativa.
Veja que mesmo espaço, que é o elemento forte da imagem, é representado de forma diferente do espaço do texto.
Mas se o querido leitor se pergunta agora. Tudo bem. Excelente introdução (no caso de que a ache mesmo!), mas e a imagem, o que significa? Pois bem, saiba que não cederei à tentação de dar agora  a minha leitura. Ou, dito de diferente maneira, não estragarei o seu experimento de matutar por uns bons minutos diante da imagem, de ser guiado por ela ao texto biblico.
Até breve!




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