quinta-feira, 28 de abril de 2011

“Trocar o logos da posteridade pelo logo da prosperidade” – Rute 4

O título deste post é extraído de uma canção de Gilberto Gil, cujo título é Logos versus Logo, do disco Dia Dorim, Noite Neon (1985). Nessa canção, Gil faz sua leitura crítica da modernidade capitalista, defendendo sua utopia de um mundo artisticamente reencantado. Não me interessa, porém, interpretar Gil, mas, sim, voltar ao texto de Rute e suas paixões, inspirado pela inspiração do ex-ministro.

Notemos os termos relativos à posteridade no capítulo 4: “para perpetuar o nome do morto sobre seu patrimônio” (v. 5); “para perpetuar o nome do falecido sobre sua herança e para que o nome do falecido não desapareça do meio de seus irmãos nem da porta de sua cidade” (v. 10); “e que graças à posteridade que Iahweh te vai dar desta jovem, tua casa seja semelhante a de Farés” (v. 12); “que seu nome seja célebre em Israel” (v. 14); e “esta é a posteridade/descendência de Farés” (v. 18).

Em um dicionário, a posteridade é descrita primariamente como descendência, ou como um tempo futuro. Enquanto paixão é descrita como “glória futura; celebridade, imortalidade” – ou seja, a posteridade tem a ver com a atitude da pessoa diante da ausência, uma atitude mais marcada pela esperança e segurança do que pela aflição e insegurança. Em culturas nas quais a honra da pessoa vale tanto quanto, ou até mais do que o patrimônio econômico, a possibilidade da extinção do nome é um perigo, uma ameaça constante. Contra a extinção do nome e o fim da honra se erige a expectativa da posteridade, da continuidade do nome, da própria existência. Em outras palavras, a expectativa positiva de descendentes gera a paixão positiva da posteridade, a esperança de ter o nome e o patrimônio perpetuados. A posteridade, tanto econômica como existencial, depende da descendência. Os filhos garantem a continuidade, a permanência do nome e do patrimônio (nos versos 5 e 10 usa-se o verbo qûm, firmar, estabelecer, confirmar, fazer durar); nos versos 2 e 18 trata-se da semente e das gerações futuras e no verso 14 trata-se do verbo “proclamar”, ou seja, trata-se de que o nome de Farés (Peres) continue a ser mencionado, falado em Israel.

Em culturas como a nossa, fortemente marcadas pelo presenteísmo de cunho capitalista, o futuro é intensamente vinculado ao presente, de modo que a expectativa de posteridade é substituída pela ambição (em dicionário descrita como “forte desejo” ou “anseio veemente”), posto que a posteridade é vinculada exclusivamente ao patrimônio – é este que dura, nós, humanos, morremos. Nosso nome somente pode perdurar se a ele estiver associada uma riqueza, uma realização objetiva. É a isto que Gil faz menção com sua frase lapidar “trocar o logos da posteridade, pelo logo da prosperidade”. Uma é paixão solidária, intersubjetiva. Outra é paixão conquistadora, objetiva. Quando a posteridade não é apenas objeto, mas valor cultural, desenvolve a paixão de uma permanência existencial, humana, intersubjetiva. Quando, porém, a posteridade é mero objeto, valor monetário, desenvolve-se a paixão de uma ansiedade objetual, um querer-ter desmesurado que subordina o querer-ser.

Não seria o sucesso da “teologia da prosperidade” um sintoma da negação da posteridade? A ambição no lugar da reputação? O patrimônio no lugar da existência?

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