terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Rute 1: uma primeira leitura das paixões

O capítulo 1 de Rute tem, claramente, duas partes principais: (a) 1-5 que descreve o cenário do estado inicial das personagens principais do livro; e (b) 6-22 que descreve o retorno de Rute e Noemi a Judá, com ênfase nos diálogos entre as mulheres-personagens. Vou focar meu post sobre a segunda parte.

1. Notinhas teóricas: (1) “As paixões, neste trabalho, devem, por conseguinte, ser entendidas como efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito do estado [...] A descrição das paixões se faz, quase exclusivamente, em termos de sintaxe modal, ou seja, de relações modais e de suas combinações sintagmáticas [...] Para explicar as paixões, é preciso, portanto, recorrer às relações actanciais, aos programas e percursos narrativos [...] O sujeito do estado ... mantém laços afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com o objeto, a que está relacionado por conjunção ou por disjunção, O estudo das paixões reabilita, no seio da semiótica, o sujeito do estado, posto de lado durante bom tempo.” (BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988, p. 61.62) [...] “Os ‘estados de alma’ estão relacionados à existência modal do sujeito, ou seja, o sujeito segue um percurso, entendido como uma sucessão de estados passionais, tensos-disfóricos ou relaxados-eufóricos.” (BARROS, 1988:62)
(2) A análise semiótica das paixões também formulou, como dispositivo operacional de análise do nível narrativo, um percurso passional canônico em quatro fases, similares às do percurso narrativo canônico (que é um percurso do fazer):

disposição - sensibilização - emoção - moralização
[manipulação - competência - performance - sanção]

2. Notinhas práticas:
1) O cenário do capítulo aponta para paixões de falta. Noemi sofre a falta de “família, pão, terra” (Carlos Mesters). As paixões de falta podem ser fiduciárias (relativas às relações interpessoais) e/ou objetuais (relativas à falta de um objeto). O trecho de versos 1-5 apenas sugere paixões, deixando a quem lê a tarefa de tornar explícito o que está implícito. Meras sugestões: paixão fiduciária de insegurança (sem marido e filhos, Noemi não vislumbra presente nem futuro para ela na terra de Moab), bem como de saudade. Paixão objetual de ansiedade (ou aflição, ou angústia, ou desespero – a diferença está no grau da paixão, mas como o texto é lacônico, não podemos mais que especular ...).

2) Nos versos 6-7 se diz que as mulheres viúvas, sabendo da condição econômica em Judá, “começaram a voltar”. O percurso passional canônico pode ser assim descrito: (a) o cenário aflitivo de Moab aliado ao conhecimento do cenário não-aflitivo em Judá oferecem a disposição para a ação, modalizando o sujeito (Noemi e noras) da passividade para a atividade – para liquidar a paixão de falta, o sujeito precisa ser modalizado por uma paixão-do-querer; (b) a memória da vida em Judá antes da mudança para Moab (terra, parentes, amigos, familiaridade) e a nova descrição da relação do Senhor com seu povo (v. 6ª) concretizam a sensibilização de Noemi para voltar à terra, em busca da liquidação do que lhe faltava; (c) a performance ou emoção é a de ‘emunah (fé ou esperança) [trata-se de uma paixão fiduciária, pois é a nova percepção da ação de YHWH que faz Noemi voltar. A tradução do hebraico é complicada, pois não é clara a distinção entre fé, fidelidade e esperança nos usos do termo ‘emunah. Minha opção é fidelidade, que possui um tom mais intensamente pessoal do que fé e esperança]; e (d) a sanção está subentendida. A insistência de Rute pode ser um indicativo de que o texto vê a nova paixão de Noemi (e Rute) como positiva. Que, ao final da estória, no capítulo 4, Noemi seja exaltada pelas mulheres (4,14-17), é indicação do caráter positivo atribuído à fidelidade. Ressalto aqui a importância do texto atribuir às mulheres que voltam uma paixão fiduciária (e não uma objetual). Por mais que Noemi buscasse liquidar a falta sentida, sua modalização passional é pessoal – busca conjunção com YHWH para alcançar a conjunção com o sustento necessário. “Pão, família, terra”, sim – mas com e sob YHWH!

Se compararmos esta análise com o post anterior do Leonel, podemos ver como a fidelidade de Noemi para com YHWH é flutuantemente teimosa (persistente) – YHWH teria deixado de “pesar sua mão” sobre ela? Ou, como o verso 6 afirma, Noemi teria percebido que YHWH mudou de atitude para com “o povo”, mesmo que não o tenha mudando em relação a ela mesma? Na crença de Noemi, YHWH é retratado com paixões conflitantes e o modo como o texto faz tal descrição tenta preservar o caráter de YHWH, ao deixar no ar o motivo da Sua mão ter pesado sobre Noemi (Formosa), a tal ponto dela se ver como Mara (Amargurada)? Apesar da má-sorte que pesava sobre ela, Noemi decide voltar e se colocar, mais uma vez, debaixo do alcance da mão de YHWH. Não é à-toa que jamais na Bíblia Hebraica se descreve o ser humano como fiel! Nossa fidelidade é ambivalente.

Vou parando por aqui, para não estender demais o tamanho do post. No próximo quero tratar da paixão fiduciária que une Noemi e Rute. Antes de voltar ao texto, só uma notinha irônica: por que será que as homofóbicas igrejas evangélicas-protestantes (e também a Católica Romana), usam o diálogo entre Rute e Noemi em cerimônias de casamento, para expressar a fidelidade entre marido-mulher? Teriam sido, exegeticamente, Rute e Noemi transformadas em lésbicas avant-la-lettre?