sexta-feira, 4 de março de 2011

Instabilidades narrativas em Rute 1

Já indiquei na última mensagem que o primeiro capítulo do livro de Rute apresenta uma tensão entre as vozes do narrador e de Noemi em relação a Deus. Enquanto aquele é mais objetivo e menos “teológico” em suas avaliações, Noemi não economiza juízos a respeito da forma como Deus a tem tratado negativamente, pesando sobre ela sua mão.

Pretendo nesta mensagem indicar outros aspectos que cooperam para a criação dessa tensão, cujo alvo é sempre o leitor, visando de certa forma desestabilizá-lo no princípio da história. Em outra linguagem o Júlio, assim como as imagens trazidas pelo Paulo, já tem apresentado esses aspectos, inclusive com mais sofisticação do que farei aqui.

Um primeiro dado a ser observado em termos de uma narrativa instável está ligado à força motora do capítulo. Elimeleque, Noemi e os filhos Malom e Quiliom saem de Belém (que em hebraico significa “casa de pão”) em busca de alimento, de pão (entendido como símbolo dos alimento básico para a sobrevivência), visto que na “casa de pão” ele inexistia. Uma vez em Moabe, onde a sobrevivência torna-se cada vez mais difícil com a ausência de esposo e filhos, Noemi houve falar que o pão, outrora inexiste em Belém, volta a ser concedido por Deus naquela cidade. Portanto, para lá de dirigem Noemi e Rute. Em outras palavras, parece que Noemi e os familiares nunca estão no lugar certo. Quando saem, o pão aparece. Quando chegam, o pão desaparece. Parece jogo de esconde-esconde.

Uma ironia se manifesta pelo fato de que, se inicialmente Noemi poderia ter-se considerado sofredora por ter que sair de sua terra em busca de alimento, ao final ela reflete que naqueles tempos ela era “ditosa” (v. 21). Afinal, se anteriormente faltava pão, que parecia ser o elemento mais importante para a vida, ainda havia esposo e filhos. Quando retorna para Belém ainda falta o pão, mas há outras ausências. O marido e os filhos não estão mais presentes. Ela tem como companhia apenas Rute a estrangeira.

Uma última instabilidade textual se dá quando o narrador apresenta os discursos de Noemi e Rute. Noemi, a hebreia, que conhecia Yahweh, o critica fortemente por tê-la castigado (conforme comentei na mensagem anterior). Rute, por sua vez, a moabita estrangeira, não titubeia, mesmo diante do sofrimento da sogra, ao dizer que “[...] o teu Deus é o meu Deus” (v. 16), recusando-se a seguir o conselho de Noemi de voltar para seus deuses (v. 15). Talvez Noemi estivesse pensando que os deuses moabitas seriam mais compreensivos com Rute do que Yahweh fora com ela. Assim, poderíamos dizer que a temente a Deus se afasta dele, enquanto a ímpia o recebe como seu Deus.

Como disse no início, tais aspectos narrativos são estratégias que visam atingir-nos como leitores. Julgo que o objetivo é que não nos apressemos em fazer juízos e comentários a respeito da ação das mulheres. Afinal é fácil, do conforto de nossos empregos, casas e famílias, avaliarmos aqueles que nada têm e tudo perderam. As instabilidades e ironias narrativas aprofundam os sentimentos de perda e ao mesmo tempo as opções de fidelidade. Elas querem nos fazer pensar.

P.S. Com esta mensagem encerro meus comentários ao primeiro capítulo do livro de Rute.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Rute 1: uma segunda (e última) leitura das paixões

O trecho de 1,7-19ª tematiza o diálogo entre Noemi e suas duas noras, moabitas (não-israelitas). Noemi, amargurada com sua situação (ela considerava que YHWH pesara a mão sobre ela), oferece uma escapatória às noras – que voltem para “a casa de sua mãe” e “cada uma para seu marido” (esperança patriarcal, pois ambas eram viúvas, e Noemi considera, logicamente, que seria mais fácil para elas se casarem em sua própria terra). Orfa aceita o argumento de Noemi e volta. Rute, porém, rejeita a argumentação de Noemi e apresenta razões passionais: (a) ela se “apegou” a Noemi, verbo cujo uso geográfico indica proximidade, estar em algum lugar, e em uso passional denota fidelidade, “apego”, companheirismo. Em outras palavras, o apego de Rute a Noemi era mais intenso do que seu apego à sua terra e família de origem – dentre duas fidelidades, Rute escolheu a mais recente em sua vida, a fidelidade a Noemi, seu deus e sua cultura; (b) há uma paixão “negativa” “não me instes ... & me obrigues a não ... (só um verbo no hebraico)” – o verbo hebraico tem um uso relativo a uma espécie de pressão benigna, mas também pode ser usado para uma pressão “maligna”, e a tradução de Almeida segue esta possibilidade, com dois verbos em português para dar o sentido da intensidade passional – poderíamos traduzir mais ou menos assim “Noemi, não me atormentes ...”. Rute vê como um “tormento” a possibilidade de se afastar de Noemi a quem se havia apegado e com quem construíra sua nova identidade pessoal; (c) a resoluta fidelidade e apego de Rute a Noemi é descrita magistralmente pela narrativa, com um acúmulo de pares verbais que culmina numa auto-maldição; “16porque, aonde quer que fores, irei eu e, onde quer que pousares, ali pousarei eu; o teu povo é o meu povo, o teu Deus é o meu Deus. 17 Onde quer que morreres, morrerei eu e aí serei sepultada; faça-me o SENHOR o que bem lhe aprouver, se outra coisa que não seja a morte me separar de ti.” Rute se entrega à YHWH, que poderia pesar a mão sobre ela, como pesara sobre Rute (na interpretação dela mesma, conforme o texto) – ou seja, a intensidade da fidelidade de Rute a Noemi é de tal monta, que ela preferia perder a vida sob o juízo divino do que perder a companhia de sua amiga e sogra; (d) Noemi, enfim, desiste de atormentá-la e se resigna a acolhê-la em sua companhia – uma atitude patética diante da amizade oferecida por Rute. À proposta de “aliança” (berith) de Rute, Noemi consegue apenas responder com resignação, posto que sua visão estava turvada por sua avaliação da desgraça que YHWH colocara sobre ela; (e) enfim, o verso 19ª retrata a fidelidade e o consenso entre ambas – foram juntas a Belém – sem, é claro, negar o relato antecedente do desnível entre a fidelidade de Rute e a resignação de Noemi.

Só para brincar um pouco de "recepção" - não é interessante como o texto retrata o modo pelo qual a crença religiosas e suas paixões afetam as relações entre pessoas? Awui, houve resignação, mas é comum haver a discórdia por causa de doutrinas, crenças, denominações ... como se o apego a Deus fosse uma razão suficiente para se desapegar das pessoas a quem queremos bem.