sexta-feira, 1 de abril de 2011

Competência e Sorte - Rute caps. 2-4

Os capítulos 2-4 de Rute narram uma ampla transformação narrativa centrada na performance da personagem principal do livro – a própria Rute. É ela quem toma a iniciativa: “Rute, a moabita, disse a Noemi: permite que eu vá ao campo respigar atrás daquele que me acolher favoravelmente” (2,2ª). Mesmo estrangeira, Rute havia adquirido a competência necessária para viver no ambiente cultural novo de sua nova família – ela sabia que os pobres tinham o direito de recolher restos da colheita e de aproveitar as esquinas dos campos para conseguir alimentos. Mas ela sabia, também, que quando eram as mulheres que faziam esse trabalho, algo mais poderia acontecer. Porém, esse algo mais, não dependia da competência, e sim, da sorte. Que estranho! Falar em sorte na Bíblia? Pois é, está no verso 3: “Por felicidade (miqréhä), entrou ela na parte do campo pertencente a Boaz”. Ou seja, para a gente se dar bem na vida não basta competência, é preciso ter um pouco de boa sorte. Só que sorte, aqui, não tem a conotação de algo mágico, ou que cai do céu. Sorte é aquilo que acontece sem que seja resultado concreto da ação da pessoa, ou seja, é aquilo que é casual, uma casualidade (e não fruto da causalidade), o que não depende do nosso planejamento e/ou esforço. Assim, uma das características da sabedoria é discernir o que fica por conta de nossa performance e o que fica por conta da sorte, já que, no final das contas, a vida é muito complexa e não conseguimos saber tudo que é necessário para enfrentá-la integralmente.

Na leitura dos dois capítulos, vemos como a competência de Rute é plural e como se manifesta em suas performances: ela conhece os costumes legais, ela sabe como se proteger da exploração masculina (há uma tensão entre a afirmação de que Boaz disse a ela para ficar junto com outras mulheres em 2,8 e o elogio de Noemi em 2,22), ela sabe cozinhar e se portar diante do dono do campo, ela sabe repartir com Noemi o fruto de seu trabalho. Rute, porém, parece ser um tanto quanto tímida. É Noemi quem toma a iniciativa de preparar o ato da sedução (3,1-5). Recebida a orientação, porém, Rute executa a performance sedutora com magistral competência. Por que magistral? O texto narra como Boaz acorda com um tremor (3,8 wayyehérad) – verbo que é usado para se referir ao medo (Ex 19,16-18; Am 3,6; Ez 26,18), ou a uma emoção intensa (Gn 27,33). Por que Boaz tremeu? Use a sua imaginação: uma mulher em seu colo, no meio da noite ... O resto da história é conhecido – Boaz se torna o marido de Rute, ela teve um filho, sua vida e a de Noemi se resolveram. Moral da história, a competência no trabalho, a sorte e a sedução de Rute foram sancionadas positivamente, pela sociedade e por YHWH. Que sorte termos este texto na Bíblia, não é?

Competência, performance, sanção: termos técnicos da semiótica greimasiana, componentes do percurso narrativo, que é um simulacro da ação em sociedade.

segunda-feira, 28 de março de 2011

O princípio da mudança – a ação dos personagens em Rute 2

Se na mensagem anterior desenvolvi os níveis de conhecimento do narrador e dos personagens e como eles interagiram a partir deles, nesta me deterei na construção dos personagens e como tal estratégia se presta para o desenrolar do capítulo.

Iniciemos por Noemi. Como ela, que é um personagem segundário neste texto, é descrita? Se no primeiro capítulo ela é apresentada como “mulher” de Elimeleque (v. 2), após a morte do marido ela assume identidade própria, relacionando-se com as noras e tomando decisões. No capítulo dois ela torna a ser definida a partir de seus relacionamentos. Por um lado, ela é “parente” de Boaz (2.1, 20b).

Por outro, se o capítulo anterior assentava Noemi com figura central a partir da qual as esposas de seus filhos são definidas como “noras” (1.6-7,22), neste capítulo o foco sofre alteração. Agora Rute assume o centro, e Noemi passa a ser descrita como sua “sogra” (2.11, 18-19, 23). Somente na parte final do capítulo, com o diálogo entre as duas, reaparecerá o designativo “nora” para Rute (2.20, 22).

E Boaz? A princípio sua identidade está vinculada a Noemi. Eles são parentes. Interessante é que, embora Boaz e Noemi estejam em Belém (2.4 e 1.22b, respectivamente), o narrador não se interessa em descrever um possível encontro enre eles na cidade, ou mesmo em levantar essa possibilidade. Eles estão distantes um do outro.

Boaz também é identificado como homem de muitos bens (2.1), que são, no enredo, apresentados na forma de campos em tempos de colheita (v. 3b). A informação a respeito da riqueza de Boaz é introduzida na história para demonstrar sua bondade. O narrador indica que ele é tão bom que essa qualidade é vivenciada mesmo por seus servos. Afinal, antes que Boaz chegasse ao campo, seus empregados haviam permitido que Rute colhesse nele (2.7).

Ao encontrar com Rute, Boaz não apenas sugere que ela permaneça colhendo em seus campos (2.8), como atende às suas necessidades imediatas, fornecendo alimento e bebida a ela (2.14). Sua ação é justificada por ter tomado conhecimento de como Rute foi bondosa para com Noemi (2.11). Além disso, ele orienta seus criados a deixarem algumas espigas sobre o chão para que a jovem as colhesse (2.16).

Agora analisaremos Rute. Como já indiquei, ela é colocada com personagem central, juntamente com Boaz, e isso é indicado pela inversão “nora/sogra”. Agora é Noemi que está em relação com Rute. Por isso a inversão de nora para sogra.

Outro elemento caracterizador de Rute é “moabita” (2.2, 6, 21). O narrador, assim como os personagens, a identificam como tal. O designativo foi introduzido no final do capítulo 1 (v. 22). Essa característica é realçada na fala de Boaz a ela, ao reconhecer que, embora ela fosse de outra terra, amparou Noemi, vindo para Belém e para um povo que não era o dela (v. 11). Como estrangeira, ela não assumiu um papel de arrogância e de oposição para com os da terra, até por que isso seria difícil na situação em que se encontrava, mas submeteu-se humildemente a Boaz e a Noemi.

O fato de Rute ser destacada como estrangeira recebe maior importância por ser ela intermediária entre Boaz e Noemi. Já disse que os parentes não se encontram neste capítulo. Pelo contrário, ele recebe notícias de sua parente (2.6, 11), mas é através de Rute que ele age em favor dela. Do mesmo modo, Noemi sabe de Boaz através de Rute e somente a partir daí orienta a nora a manter-se nos campos do parente (2.22).

Por fim a disposição do personagem Rute é destacado. Já indiquei esse aspecto anteriormente, mas o faço a partir de outro ângulo. Sua iniciativa em procurar os campos para colher e em submeter-se a Boaz como fonte de sua sobrevivência, indica que ela assume o papel de provedora da família em lugar de Elimeleque, seu sogro, e de seu esposo, ambos mortos. Desse modo, a inversão de papéis entre ela e Noemi recebe maior destaque. A estrangeira não apenas assume a terra, o povo e a religião da sogra, como se torna fundamental para que esta sobreviva.

Concluindo, o capítulo 2 se desenvolve a partir da configuração e ação de cada um dos personagens apresentados. Aqui cabe retornar à proposta de estrutura apresenta algumas mensagens atrás. Inicialmente temos Noemi e Rute dialogando, em seguida Rute vai para os campos e encontra-se com Boaz e há um longo diálogo entre eles. Finalmente, Rute volta ao encontro de Noemi e, a partir das informações obtidas, Noemi orienta a ação de Rute.

Parece-me que, dos personagens apresentados, Rute é o de maior densidade por ser o único que é apresentado a partir de um aspecto negativo – é moabita – e mesmo assim consegue suplantar essa dificuldade e agir de modo positivo. Ela impressiona Boaz com sua determinação e força de vontade, e se torna a fonte de subsistência para Noemi.