segunda-feira, 11 de julho de 2011

Gálatas 2,19-21 Justiça Messiânica e Nova Subjetividade

A (19) Pois eu, mediante a lei, morri para a lei; a fim de que viva para Deus - tenho sido crucificado com o Messias. B (20) E já não sou eu quem vive, mas o Messias vive em mim. A vida que agora vivo na carne, vivo-a na fidelidade, na do filho de Deus, que me amou e se entregou em meu favor. A’ (21) Não anulo a graça de Deus, pois se a justiça fosse possibilitada pela lei, então o Messias teria morrido em vão.

Em post anterior, tratei da questão da fidelidade do Messias, com base em Gl 2,15-16. Na última seção de Gl 2,15-21 (os versos 19-21, aos quais se refere este post) encontramos uma radical mudança de pessoa verbal. Paulo passa a falar na primeira pessoa do singular – duas vezes usa o pronome “eu” e três vezes usa formas oblíquas desse mesmos pronome. Além destas cinco ocorrências, Paulo usa mais cinco vezes o verbo na primeira pessoa do singular, sem o pronome pessoal. Ao todo, então, em três versos, a primeira pessoa do singular ocorre dez vezes! Fica evidente que o foco temático passou a recair sobre o sujeito – Paulo está propondo uma nova subjetividade. (Para efeitos de nossa discussão, deixo de lado a questão de se Paulo está sendo autobiográfico, ou se o “eu” tem uma força universalizante. De um modo, ou de outro, a nova subjetividade aqui desenvolvida por Paulo tem a ver com toda a humanidade, especialmente com o “novo ser humano” no Messias.)

A estrutura desta pequena perícope é simples e bem visível: nos versos 19 & 21, o foco temático recai sobre a Lei e sua relação com a Justiça, conforme se pode falar dessa relação a partir da crucificação do Messias. O verso 20 tematiza, por sua vez, a vida do novo sujeito, descrita mediante a interação entre a vida do Messias no sujeito e a vida do sujeito na fidelidade do Messias. Configura-se, assim, uma estrutura quiástica-concêntrica simples: A – B – A’.

1. O texto abre com uma declaração paradoxal (com o pronome pessoal "eu"), outra contrastiva e uma última declarativa (ambas sem o pronome pessoal): “Eu, pela lei, morri para a lei, a fim de que viva para Deus - tenho sido crucificado com o Messias”. O paradoxo está na abertura do verso: morremos para a lei mediante a instrumentalidade da própria lei. Em outras palavras, a lei deslegitima e desfundamenta-se a si mesma. Como escapar do domínio da lei? A própria lei cumpre o papel de colocar um fim à sua própria validade, à sua própria força. Mas como a lei realiza esta auto-deslegitimação? Mediante a condenação do Messias à morte. Em Romanos 7, seguindo uma forma rabínica tradicional de entender a validade da lei, Paulo afirma que a morte torna a pessoa livre da força da lei. Aqui, o mesmo ponto é destacado, com um elemento peculiar: é a própria lei que nos faz morrer para a lei. Ora, tendo eu sido crucificado com o Messias, fui tornado morto para a lei, pela própria lei que condenou o Messias à morte e o tornou maldição.

Dois aspectos podem ser destacados aqui, unindo esta declaração paradoxal com o verso 21. Neste verso, Paulo afirma claramente que a lei não pode ser o veículo da justiça – pois se a lei fosse portadora da justiça, o Messias teria morrido inutilmente e a graça de Deus é que teria perdido o valor (o verbo usado no início do v. 21 vem do ambiente legal e se refere à anulação de um ato legal, à sua abrogação). Ora, a morte do Messias teria sido inútil se não fosse, ela mesma, a portadora da justiça de Deus. A morte do Messias teria sido inútil se, como condenação e maldição pela lei, não anulasse a própria lei, a fim de fazer vigorar a graça de Deus em seu lugar (cf. a discussão no capítulo 3 de Gálatas).

2. O texto encerra de modo também paradoxal: “Não anulo a graça de Deus...”. Ora, seguindo a interpretação protestante tradicional de Paulo, esta negativa paulina não faz sentido. De que maneira a negação da força da Lei poderia anular a graça de Deus? Não temos nos acostumado a ler Gálatas a partir do conflito entre Lei e Graça? Entretanto, parece que Paulo não via as coisas bem assim. Para ele, a anulação da Lei poderia ser interpretado como anulação da graça de Deus – ora, não foi a Torá uma bênção de YHWH para seu povo eleito, libertado e colocado em relação de aliança? Para Paulo, a dádiva da Lei, embora parte da graça de YHWH para com seu povo, não tinha como função a implementação da justiça. Ora, Israel recebera a justiça de Deus antes da outorga da Lei, assim como mais tarde em Gálatas Paulo irá argumentar que a Lei foi dada séculos depois de Abraão ter recebido a justiça de Deus. Entre Lei e Justiça há um desnível, um abismo quase insuperável. A Lei não proporciona justiça – pelo contrário, a Lei demonstra nossa escravidão ao pecado e a ela mesma (cf. Gálatas 3-4 e a discussão em Romanos). A Lei, que tem o poder de matar (condenar à morte) não pode proporcionar justiça, pois esta é vida e só pode ser causada pela ação do próprio Messias que, morrendo na cruz, possibilita à criação viver a vida de Deus. A justiça vem pelo Messias, não pela Lei. Ou, como declara Paulo aos romanos “No Evangelho se revela a justiça de Deus” (1,17). Voltarei ao tópico da justiça em outros posts.

3. O que mais me interessa, aqui, é analisar o verso 20 e sua proposta de uma subjetividade messiânica. Uma série de declarações em tensão destacam os contornos da nova subjetividade: (a) não sou mais eu quem vive, é o Messias que vive em mim. O novo sujeito messiânico é um sujeito esvaziadamente cheio. Esvaziado de si mesmo, o novo sujeito é anfitrião do Messias que nele habita e o plenifica. O Messias oferece não só o padrão, mas também a energia para a nova subjetividade; (b) “mas a vida que eu agora vivo na carne” está em tensão com “já não mais vivo eu”. A vida que vivo na carne é a vida vivida no tempo escatológico – que sofre com a plena interatividade da vida messiânica e da vida pré-messiânica no mesmo tempo-espaço-pessoa. Encontramos aqui uma impossibilidade: viver a nova vida na velha vida; (c) vivo na fidelidade do Messias (aqui designado como Filho de Deus). Ora, a fidelidade do Messias foi a base da justificação e da revelação da justiça de Deus. Agora, Paulo passa a afirmar que a fidelidade do Messias é o modo no qual a justiça de Deus é vivida na nova subjetividade messiânica.

A vida terrena do Messias Jesus é, assim, o padrão para a vida “na carne” dos novos sujeitos participantes da justiça de Deus. Diante dos projetos de subjetividade que o “tempo presente” nos oferece, temos a possibilidade, na graça, de participar em um novo projeto de vida – uma vida completamente vivida em fidelidade a Deus e seu projeto de justiça para toda a criação. Uma possibilidade que, como todo verdadeiro dom, é, de fato, a impossibilidade que constitui o novo sujeito diante de Deus e do próximo. O Messias não oferece apenas o padrão. Oferece a energia – energia vital cujo nome paulino é fidelidade – a velha-nova fidelidade da aliança oferecida por YHWH a seu povo.

Fidelidade que será tema de novo post, pois este já está ultrapassando os limites da sua paciência como leitor(a).

Paulo e os apóstolos em Jerusalém – Gl 2.1-10

O capítulo dois está em íntima relação com o anterior, uma vez que relata um novo encontro, 14 anos depois (2.1), entre Paulo e os apóstolos na Cidade Santa.

O contexto é o mesmo: a discussão a respeito do evangelho paulino, embora sejam introduzidos novos detalhes.

Como sempre, o apóstolo viaja levando companheiros. Desta vez são Barnabé, aquele que o discipulou, e Tito, cristão de origem grega e seu discípulo.

Procurando manter autonomia diante daqueles que intitula “homens” e “apóstolos”, Paulo faz questão de afirmar que empreendeu a viagem em obediência a uma “revelação” (v. 2). Com isso, mantém independência e distância estratégica.

O objetivo do encontro: expor o evangelho que prega entre os gentios (v. 2), principalmente aos de maior influência. Há, aqui, uma ação estratégica. Se anteriormente na carta ele defendeu o seu evangelho diante dos gálatas e criticou o evangelho dos homens que os estavam influenciando, agora ele tem consciência de que precisa ser mais brando e apresentar o conteúdo de sua pregação aos apóstolos para conseguir apoio, sem indicar que é dependente deles. É uma situação bastante delicada.

A expressão do v. 3, de que “nem mesmo Tito [...] sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se”, permite concluir que em Jerusalém havia influência do grupo ao qual Paulo se opunha. Ao mesmo tempo, é uma indicação aos gálatas de que aqueles que os estão influenciando não conseguiram se impor junto aos apóstolos.

Paulo nomeia seus opositores de “falsos irmãos” (v. 4). Esclarece que eles procuram vigiar sua liberdade e a de seus seguidores, e que, assim, desejam reduzi-los à escravidão. Afirma que não se submeteram a tais pessoas, a fim de que a verdade do evangelho permaneça entre seus leitores (v. 5). É significativo como a argumentação de Paulo procura inverter a situação diante dos gálatas. Para esses, Paulo estava perdendo influência e os cristãos judaizantes estavam impondo seu evangelho. Paulo estava perdendo terreno. Mas, em sua argumentação, a situação é outra. São os falsos pregadores que o perseguem e procuram destruí-lo.

Voltando a falar daqueles que possuem “maior influência” (certamente os apóstolos em Jerusalém), também eles não acrescentaram nada a seu evangelho (v. 6). Qual o objetivo dessa afirmação? Manter seu apostolado livre de quem quer que seja. De um lado, da oposição dos judaizantes; de outro, da esfera dos apóstolos de Jerusalém.

Quanto a esses (especificamente Tiago, Cefas e João – v. 9), Paulo esclarece os gálatas que eles lhe estenderam a “destra da comunhão”. Isso se deu por terem reconhecido que Deus havia concedido a Paulo o “evangelho da incircuncisão”, assim como Pedro possuía o evangelho da circuncisão” (v. 7). Era essa a situação que Paulo almejava. Mostrar aos gálatas que os verdadeiros representantes do evangelho da circuncisão (não o evangelho que pregava a circuncisão, mas que se dirigia aos circuncisos, isto é, aos judeus) haviam aceito sua pregação. Portanto, aqueles que o criticavam no território da Galácia ficavam desautorizados.

Parece-me haver aqui um dos primeiros indícios de que de fato havia uma grande dificuldade em colocar juntos, nas mesmas comunidades, judeus e gentios. O mais apropriado era reconhecer a necessidade de comunidades cristã-judaicas e outras cristã-gentílicas. Essa sitação fica formalizada nessa passagem. Isso significaria uma perda do ideal cristão de que não há diferenças entre pessoas, nacionalidades e religiões diante de Deus? Possivelmente. Essa mesma discussão retornará na carta aos Romanos.