sábado, 5 de janeiro de 2013

Alegoria – problema ou solução? – 4.21-31 – Parte I

A alegoria, definitivamente, é um sério problema hermenêutico. E isso desde os inícios da história da interpretação cristã. Afinal, um método que parece desprovido de método ou fundamentos tem tudo para ser um problema. Pelo menos para a hermenêutica historicista.

Paulo conclui a seção anterior (4.20) afirmando estar “perplexo a vosso respeito”, expressão que contém elevado grau de desânimo. Parece que ele tem grandes dúvidas a respeito de seu poder de convencimento. Mesmo o argumento relacional desenvolvido em 4.12-20 parece não surtir efeito. O que fazer? Utilizar a alegoria bíblica. Para Paulo, pelo menos, ela é o último e mais importante argumento a ser usado. Se lembrarmos que ele está concluindo a Probatio, o momento na carta em que procura provar sua posição com a utilização de diversos argumentos, é surpreendente, pelo menos para nós, intérpretes cristãos, que ele tenha reservado a alegoria para o final.

Obviamente não há espaço para discussões aprofundadas sobre a alegoria neste post, mas há uma questão de base que podemos abordar.

A hermenêutica/exegese historicista tem como pressuposto a premissa de que os textos bíblicos devem testemunhar a realidade dos eventos que descrevem. Desse ponto de vista, textos narrativos remetem o leitor aos fatos históricos que são seu fundamento. E textos argumentativos remetem o leitor ao contexto histórico produtor da relação entre remetente e destinatário. Portanto, os textos estão sempre e indissoluvelmente ligados aos fatos dos quais dão testemunho.

Diante dessa postura teórica toda proposta que veja o texto transcender ao papel de testemunha é vista negativamente. O texto deve ser um servo da história. Se não for, ele torna-se perigoso, pois se abre para sentidos não controláveis, diriam os hermeneutas historicistas. Por isso a interpretação alegórica tão presente nos primeiros séculos do cristianismo foi negada, principalmente a partir da Reforma Protestante e por círculos fundamentalistas contemporâneos.

Essa preocupação com a libertação de sentido dos textos bíblicos é saudável? Talvez, mas o problema é a concepção de texto inadequada ou pelo menos limitadora que tal perspectiva contém. Afinal, todo texto transcende. Não há texto que se encerre em si mesmo. Todo texto é um ponto de partida. E mesmo os historicistas devem concordar com essa afirmação. Afinal, para eles, os textos bíblicos são um ponto de partida para a reconstrução histórica. Isso significa que, para os hermeneutas historicistas, o texto também transcende. O problema é que é uma abertura limitada e fechada. O texto sai de si para logo em seguida tornar-se vassalo de reconstruções, hipotéticas, diga-se de passagem, de fatos históricos.

Todo texto, do ponto de vista pragmático, está inacabado. Obviamente ele traz propostas de sentidos ligadas ao seu autor. Mas a compreensão, que envolve mais do que o sentido primeiro, está aberta à espera do leitor. Esse é um aspecto mais do que normal em textos literários. Todo leitor, durante e após a leitura, reflete sobre o(s) sentido(s). O grau de aproximação daquilo que o autor pretendia depende de inúmeros fatores. É claro que o leitor pode chegar a conclusões totalmente díspares daquilo que o texto apresenta. Mas, de modo geral, toda leitura apresenta uma relação entre texto e os aspectos constituintes do mundo do leitor que exercem influência em sua compreensão.

Portanto, ao lermos uma obra, somos lançados por ela a vários níveis de reflexão. Em outras palavras, o texto transcende a si mesmo. E é bom que seja assim. O texto bíblico não foge a esse processo. Ao lermos a Bíblia, também somos lançados à frente, e não para trás, em busca de reflexões que façam sentido para nós.

Digo tudo isso para que entendamos que a alegoria praticada largamente nos inícios do cristianismo, e em Gálatas por Paulo, faz parte desse processo de relacionamento de leitores com textos. Com a alegoria, o intérprete pergunta-se sobre a ampliação e aprofundamento do sentido de diversos textos. O texto está ligado apenas ao passado? Diz respeito apenas a narrativas de fatos ocorridos com este ou aquele homem ou mulher bíblico? Não. As narrativas são pontes para ligar sentidos e vivências.
Concluso lembrando que a alegoria não nega o aspecto histórico do texto bíblico. Não estamos diante de uma opção: ou o sentido histórico ou o sentido alegórico. Essa aporia não é verdadeira. Volto a dizer, a alegoria transcende o sentido histórico, mas não o nega.

Acabei deixando de comentar o texto bíblico. Faço isso na próxima mensagem.